Recibido 08-07-2023
Aceptado 25-01-2024
https://doi.org/10.22320/07196466.2024.42.066.01
A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ
COMO INDUTORA DE POLÍTICAS
HABITACIONAIS: O CASO DA
OCUPAÇÃO HOTEL CAMBRIDGE
LA PARTICIPACIÓN CIUDADANA COMO MOTOR
DE LAS POLÍTICAS DE VIVIENDA: EL CASO DE LA
OCUPACIÓN DEL HOTEL CAMBRIDGE
CITIZEN PARTICIPATION AS A DRIVER OF
HOUSING POLICIES: THE CASE OF THE
OCCUPATION OF THE CAMBRIDGE HOTEL
Pesquisa nanciada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - CAPES, modalidade 2.
Figura 0. Registro do estado
do edifício durante a ocupação.
Fonte: Jardiel Carvalho/R.U.A
Foto Coletivo, 28 nov; 2016
Isadora Paiva-de-Moraes
Mestre em Arquitetura e Urbanismo,
Superintendente de Habitação
Caixa Econômica Federal, Campinas, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-9664-725X
Isadora.pm@puc-campinas.edu.br
Vera Santana-Luz
Doutora em Arquitetura e Urbanismo,
Professora e pesquisadora, Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo
"Pontifícia Universidade Católica de
Campinas", São Paulo, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-6931-0574
veraluz@puc-campinas.edu.br
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A participação cidadã como indutora de políticas habitacionais:
o caso da Ocupação Hotel Cambridge
Isadora Paiva-de-Moraes, Vera Santana-Luz
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RESUMEN
Frente a la ineciencia del Estado en la provisión de vivienda, se pretendió identicar posibilidades en la lucha por la vivienda social, teniendo como
estudio de caso la Ocupación Hotelera de Cambridge, ubicada en el centro ampliado de la ciudad de São Paulo. El edicio, originalmente un hotel
construido en la década de 1950 con incentivos scales limitados al Plan de Conmemoración del IV Centenario de la ciudad, terminó sus actividades en
2002. Fue expropiado en 2011 y ocupado por el Movimiento Sin Techo del Centro, en 2012. Luego de tensiones y participación en consejos participativos,
el Movimiento obtuvo la donación del inmueble y una licencia en un programa federal de recalicación. A través de un análisis cualitativo del décit
habitacional del Brasil, concentrado en exceso de renta y precariedad de la propiedad, frente a políticas habitacionales centradas en la producción de
unidades a través de programas de desarrollo en localidades periféricas, se entiende que el análisis de los determinantes de la factibilidad del estudio
de caso puede contribuir a la discusión de las políticas y acciones gubernamentales. La metodología, basada en el campo procedimental, métodos
observacionales y revisión de literatura, en el campo lógico se estructuró en los métodos dialéctico e inductivo de investigación, sistematización y análisis
crítico de referencias bibliográcas y documentales y, en procesos empíricos, en el análisis cualitativo de entrevistas semiestructuradas y visitas de campo.
Se concluyó que el poder de diálogo y formación de redes del Movimiento, y su estrategia basada en rodearse de actores que solidican su lucha,
contribuyeron a la viabilidad del Hotel Cambridge para su uso residencial. A partir de los datos analizados, también se deende la innegable participación
de los municipios para viabilizar la dotación de viviendas en zonas céntricas. Sin embargo, considerando el sesgo hegemónico identicado, la acción política
de los movimientos sociales y la participación de la academia en su instrumentalización son de suma importancia para fortalecer la relación Capital-Estado
y posibilitar la confrontación de políticas territoriales que contemplen el derecho a la ciudad.
Palabras clave: participación ciudadana, ocupación, movimientos sociales, actores sociales, nanciación de la vivienda.
ABSTRACT
Faced with State inefciency in housing provision, the occupation of the Cambridge Hotel, located on the outskirts of São Paulo’s city center, was used as a case
study to identify possibilities in the struggle for social housing. The building, initially a hotel built in the 1950s, closed in 2002, was expropriated in 2011, and occupied
by the Downtown Homeless Movement (Movimento Sem Teto do Centro) in 2012. The movement, after social tensions and participation in participatory councils,
obtained the donation of the property and its license in a federal requalication program. Through qualitative analysis of the housing decit in Brazil, characterized
by the excessive burden of rents and the precariousness of real estate, in contrast to housing policies focused on the production of units through development
programs in peripheral locations, it is understood that the analysis of the determining factors for the case study’s feasibility can contribute to the discussion of
government policies and actions. The methodology, based on the procedural eld, observational methods, and literature review in the logical eld, was structured
in dialectical and inductive methods for the research, systematization, and critical analysis of bibliographic and documentary references and, in empirical processes,
in the qualitative analysis of semi-structured interviews and onsite visits. It was concluded that the power of dialogue and formation of the movement’s networks
and its strategy, based on surrounding itself with actors that solidify its struggle, contributed to the viability of the Cambridge Hotel as a residential property. Based
on the data analyzed, it is also argued that the participation of municipalities is undeniable in enabling the provision of housing in central areas. However, considering
the hegemonic bias identied, the political action of social movements and the participation of academia in its instrumentalization are essential to strengthen the
Capital-State relationship and enable the collation of territorial policies that the right to the city contemplates.
Keywords: citizen participation, occupation, social movements, social actors, housing nancing.
RESUMO
Diante da ineciência do Estado na provisão de moradias, pretendeu-se identicar possibilidades na luta por habitação social, tendo como estudo
de caso a Ocupação Cambridge, localizada no centro expandido da cidade de São Paulo. O edifício, originariamente um hotel construído na década de
1950, encerrou suas atividades em 2002, foi desapropriado em 2011 e ocupado pelo Movimento Sem Teto do Centro, em 2012. Após tensões sociais e
atuação em conselhos participativos, o movimento obteve a doação do imóvel e habilitação em programa federal para requalicação. Mediante análise
qualitativa do décit habitacional do Brasil, caracterizado pelo (?) ônus excessivo dos aluguéis e na precariedade dos imóveis, em contraposição com
políticas habitacionais centradas na produção de unidades por meio de programas de fomento em localização periférica, entende-se que a análise dos
fatores determinantes para a viabilização do estudo de caso pode contribuir para a discussão de políticas e ações governamentais. A metodologia, baseada
no campo procedimental, em métodos observacionais e revisão de literatura, no campo lógico se estruturou nos métodos dialético e indutivo para
investigação, sistematização e análise crítica de referências bibliográcas e documentais e, em processos empíricos, na análise qualitativa de entrevistas
semiestruturadas e visitas de campo. Concluiu-se que o poder de diálogo e formação de redes do movimento e sua estratégia baseada em cercar-se de
atores que solidiquem a sua luta, contribuíram para a viabilização do Hotel Cambridge como imóvel de uso residencial. Pelos dados analisados, defende-
se, também, a indelegável participação dos municípios para viabilizar provisão de moradias em áreas centrais. No entanto, considerando o viés hegemônico
identicado, a atuação política dos movimentos sociais e a participação da academia em sua instrumentalização são de extrema importância para tensionar
a relação Capital-Estado e possibilitar o cotejamento de políticas territoriais que contemplem o direito à cidade.
Palavras-chave: participação cidadã, ocupação, movimentos sociais, atores sociais, nanciamento habitacional.
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INTRODUÇÃO
Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela
Organização das Nações Unidas, já declarava a moradia como direito humano
universal:
Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a
si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e
direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez,
velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência, fora de seu
controle. (United Nations, [1948] 2023, art. 25)
Em 2020, a crise gerada pela pandemia de Coronavírus exponenciou
a relação entre saúde e planejamento urbano (Borges & Marques, 2020).
As disparidades sociais e condições precárias de moradia mostraram-
se preponderantes diante da concentração de mortes nos bairros
periféricos, onde construções informais, ausência de saneamento básico e
adensamento potencializaram a disseminação do vírus. O distanciamento dos
empreendimentos periféricos, voltados à moradia social, agravou a diculdade
de isolamento, em virtude da necessidade de permanência dos trabalhadores,
por longos períodos, nos meios de transporte públicos. Este quadro reforça
sobremaneira o caráter essencial do Direito à Moradia e de como este
encontra-se intrinsecamente ligado aos demais direitos sociais. Entretanto, os
movimentos sociais que reivindicam a moradia em áreas infraestruturadas,
apresentam diculdades na luta pela garantia destes direitos.
Em relação ao ordenamento jurídico do Brasil, embora tenha se tornado
um Estado republicano em 1889, apenas em 1988 — quase um século depois
—, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil
(1988), na retomada da democracia após o golpe e governo militar, houve a
implementação de uma possível política urbana.
Neste contexto, o direito à moradia foi incluído, por meio de emenda
complementar como cláusula social, na Constituição Federal de 1988.
Engels (2015, p. 6) o denominou “direito de todos os direitos” já no nal do
século XIX e descreveu, como marco teórico fundante, as consequências da
urbanização acelerada e o dualismo campo-cidade na Inglaterra do século
XVIII, situação que se reproduziu ao longo do tempo nos demais países,
simultaneamente à marcha da urbanização sob moldes do processo de
produção industrial e da extração especulativa de valor da terra:
A expansão das grandes cidades modernas dá um valor articial,
colossalmente aumentado, ao solo em certas áreas, particularmente
nas de localização central; os edifícios nelas construídos, em vez
de aumentarem esse valor, fazem-no antes descer, pois já não
correspondem às condições alteradas; são demolidos e substituídos
por outros. Isto acontece antes de tudo com habitações operárias
localizadas no centro, cujos alugueres nunca ou então só com extrema
lentidão ultrapassam um certo máximo, mesmo que as casas estejam
superpovoadas em extremo [...]. O resultado é que os operários vão
sendo empurrados do centro das cidades para os arredores, que
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as habitações operárias e as habitações pequenas em geral se vão
tornando raras e caras e muitas vezes é mesmo impossível encontrá-las,
pois nestas condições a indústria da construção, à qual as habitações
mais caras oferecem um campo de especulação muito melhor,
excepcionalmente construirá habitações operárias. (Engels, [1873] 2015,
p. 18)
O Brasil acompanhou este movimento: a população urbana brasileira
saltou de 31%, na década de 1940, para 84,72%, em dados de 2015 (Instituto
Brasileiro de Geograa e Estatística [IBGE], 2023). Ermínia Maricato, em
seu artigo “Conhecer para resolver a cidade ilegal”, arma que, apesar da
urbanização parecer inicialmente uma alternativa para a independência do
mando coronelista, a modernidade veio acompanhada de seu lado arcaico: “[...]
a modernização é apenas para alguns; a cidadania e os direitos, idem” (Maricato,
s. d., p. 1).
Contemporaneamente, verica-se que, a despeito da inclusão de um
capítulo sobre Política Urbana na Constituição Federal (1988), regulamentada
pelo Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257, 2001), instrumento que representou
importante avanço legal no reconhecimento da função social da propriedade,
a fragilidade de nosso pacto federativo (Caldas, 2015), os entraves de nosso
sistema judiciário e o caráter hegemônico da relação capital e estado, em que
a aplicação das leis “para alguns” (Maricato, 1996) é inuenciada pela herança
de estraticação socioespacial que permeou nosso processo de urbanização,
fazem com que, em regra, tais leis não sejam sucientemente aplicadas — dada
a inclusão do direito de forma precária — o que permitiu a perpetuação de
um processo em que o direito à cidade é restringido ao acesso à moradia,
através de programas de fomento, recorrentemente mediante nanciamento
e não provisão, e passa a representar o meio e não o m das políticas
implementadas.
Alguns referentes delimitados por Marx (2011), especialmente o valor
de uso e o valor de troca, e sua leitura efetuada por Harvey (2013), são
articuláveis aos conceitos fundamentais sobre o direito à cidade de Lefebvre
(2001) e desdobráveis às circunstâncias do direito à moradia, preconizada
pelos principais marcos legais como dever do Estado e direito fundamental —
inalcançado — se observado o décit de 5,87 milhões de moradias no Brasil
(Fundação João Pinheiro [FJP], 2021), em contraposição à existência de 7,9
milhões de imóveis ociosos (FJP, 2018). Tal dicotomia é agravada pela própria
distorção causada pelo valor de troca — o que reforça o modelo consolidado
no país em que a política é reduzida a programas de fomento, a despeito das
diversas necessidades identicadas mediante análise quantitativa do décit
habitacional.
Tais soluções implicam que o acesso a este direito fundamental seja
reduzido ou condicionado à possibilidade, pelo beneciário, de acesso a crédito
(Royer, 2009; Runo, 2015) e a exigência de regularidade cadastral acaba por
excluir grande parte dos demandantes.
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Neste contexto de ineciência da atuação do Estado no provimento
de direitos fundamentais e na administração do legado da urbanização
desenfreada, verica-se o fortalecimento dos movimentos sociais como
importantes agentes de tensão na relação Capital Estado, contexto em que
se insere este artigo, que defende a participação cidadã como instrumento
fundamental de contraposição ao viés hegemônico, ao tangibilizar, para os
demais setores da sociedade civil, a limitação do Estado, tanto no provimento
de habitação social, quanto na garantia da aplicação da função social da
propriedade, como se pode exemplicar por meio do material de divulgação
do MSTC apresentado na Figura 1.
No mesmo sentido, Caldas (2015) reete sobre os ganhos imputados
aos movimentos sociais no processo de luta pela reforma urbana, em relação
“[...] à capacidade crítica e de organização, mesmo que as disputas não sejam
vitoriosas, em um primeiro momento”. A autora destaca, ainda, a importância
do potencial dos movimentos, durante este processo de disputa, de
aproximarem a “sociedade da reexão sobre a cidade, a cidadania, o direito e a
democracia” (Caldas, 2015 p. 91).
A m de atingir os objetivos propostos, utilizamos, como estratégias
metodológicas, no campo procedimental, métodos observacionais e de
revisão de literatura e, no campo lógico, os métodos dialético e indutivo
para investigação, sistematização e análise crítica de referências bibliográcas
e documentais, bem como visitas de campo ao objeto do estudo de caso e
território de inuência direta.
Figura 1. Material do MSTC que
distingue os termos “invasão” e
“ocupação”. Fonte: Movimento
Sem Teto no Centro, MSTC,
13 ago. 2020. Recuperado de
Facebook
METODOLOGIA
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Para investigação da participação e visão dos atores envolvidos, partiu-se
de análise qualitativa de entrevistas semiestruturadas com representantes de
atores envolvidos na viabilização do empreendimento, bem como coletas de
depoimentos durante as pesquisas de campo.
Pesquisa articulada, que resultou em artigo, com a análise quantitativa
e qualitativa de matérias em sites selecionados relacionados à líder do
Movimento, Carmen Silva, contribuíram, também, para a investigação da
formação de sua gura pública e para a sistematização de fatos relacionados
ao Movimento propriamente dito, uma vez que, considerando ainda a baixa
produção acadêmica a ele relacionada, bem como a ausência de sistematização
formal pelo próprio Movimento, tais veículos passaram a compor importante
fonte para o presente estudo de caso.
O caso do Residencial Cambridge — Recorte Socioespacial
O Hotel Cambridge foi inaugurado em 1953, durante o processo de
expansão da rede hoteleira da cidade de São Paulo, para ns de comemoração
de seu IV Centenário. O Hotel — projetado por Francisco Beck, expoente da
arquitetura moderna — foi testemunha da ascensão e decadência do centro,
após migração de suas atividades comerciais para áreas de expansão, tendo
encerrado suas atividades em 2002, com passivo trabalhista e tributário.
Figura 2. Hotel Cambridge.
Fonte foto: Werner Haberkorn,
1940-1960. Fonte: Acervo do
Museu Paulista, Universidade
de São Paulo, Iconograa.
Recuperado de http://acervo.
mp.usp.br/IconograaV2.aspx#
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O edifício é localizado na Avenida Nove de Julho, importante corredor
de interligação do Centro aos principais bairros da zona sudoeste da cidade
de São Paulo, com inserção em área dotada de infraestrutura e acesso
a inúmeros equipamentos públicos. Considerando a predominância de
empreendimentos habitacionais de interesse social em áreas periféricas, a
m de garantir o retorno esperado pelo capital privado, o fator localização
compõe tema mais recorrente de críticas do Programa Minha Casa Minha
Vida, principal programa habitacional do Brasil. Em documento elaborado
pela Controladoria Geral da União, destacou-se o legado em que a “[...]
segregação social e diculdade de mobilidade são efeitos diretos do
distanciamento, além da falta de infraestrutura urbana nas proximidades”
(Ministério da Fazenda, 2020, p. 47).
Não obstante, assim como o Hotel Cambridge, existem inúmeros imóveis
ociosos nas metrópoles do Brasil e do mundo; em especial, para o caso
em pauta, citamos o município de São Paulo, em que o décit habitacional
é de 358 mil unidades. Contraditoriamente, estima-se que a cidade tenha
mais de 2.800 imóveis ociosos, abandonados, subutilizados ou terrenos sem
edicações, o que equivale a dois milhões de metros quadrados sem uso
na cidade (São Paulo, 2016. A lista por espera por provimento de habitação
de interesse social, no município de São Paulo, tem mais de um milhão de
pessoas. Projeções da prefeitura apontam para 20 mil cidadãos habitando
em situação de rua na cidade, sendo 60% na área central (Companhia de
Habitação Popular do Estado de São Paulo [COHAB-SP], 2015).
Não obstante, discute-se, no campo acadêmico e entre os entes públicos,
a necessidade de requalicação das áreas centrais, que passaram por um
processo de esvaziamento a partir dos anos 1970, com a indução de novas
centralidades econômicas. Verica-se, no entanto, que as esparsas ações
governamentais direcionadas à sua requalicação, como incentivos legislativos
para retrot, bem como para produção de Habitação de Interesse Social
pelo Plano Diretor Municipal, de 2014, ao menos no município de São Paulo,
acabaram sendo apropriadas pela iniciativa privada. Foi estimulada a produção
de habitação para faixas superiores de renda, revertendo recursos públicos,
diretamente ou por meio de concessão de isenção de taxas e impostos,
como instrumentos do capital privado (Santo Amore, Sampaio, Higushi, &
Pereira, 2015).
São Paulo é a maior cidade da América Latina e a Região Metropolitana de
São Paulo é a 4ª mais populosa do planeta (World Population Review, 2023).
O legado de anticidades, gerado pelo fenômeno de urbanização induzida
pela relação capital-estado — retroalimentada por ações governamentais
direcionadas — representa uma situação socioespacial que se replica em
metrópoles de diversos países, o que torna a presente pauta relevante, bem
como a sistematização das tensões sociais causadas e soluções construídas
através deste processo dialético. Por meio de sua análise crítica, pretendeu-se
contribuir para a discussão de alternativas de políticas públicas e planejamento
urbano nos grandes centros.
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Sobre o Movimento Sem Teto do Centro
Parte-se do estudo de caso do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC)
— movimento social com atuação relevante na região central de São Paulo
—, que viabilizou provimento de mais de 3 mil moradias (MSTC, 2014). O
movimento se iniciou a partir de um grupo de mulheres que se reuniam em
uma associação de cortiços. 60% do décit habitacional do Brasil corresponde
àquele sofrido por mulheres (FJP, 2021). Seu primeiro ato conjunto foi a
ocupação de um prédio na Rua Álvaro de Carvalho em 1997, hoje conhecida
como Ocupação Nove de Julho. O MSTC é liderado por Carmen Silva, cuja
trajetória insurgente se destaca pela formação de redes e parcerias na luta pelo
direito à moradia.
Em uma análise das ocupações do centro de São Paulo, Buonglio (2008)
delimita:
As ocupações de prédios nos centros, datadas da década de 1990 e
intensicadas após 2000 em diversas capitais brasileiras, não podem
ser explicadas como produto de ações isoladas, mas inseridas num
período de retomada das lutas urbanas como resistência frente ao
aprofundamento da pobreza e da precariedade social, atreladas ao
contexto do neoliberalismo. O contexto político e legal de consolidação
democrática trouxe o debate da função social da propriedade e da
cidade, com a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade de
2001. (Buonglio, 2008, p. 1)
O MSTC considera que a moradia é um direito básico, “esteio” para demais
direitos, pelos quais o Movimento também luta:
[...] o Movimento Sem-Teto do Centro é um movimento de luta por
habitação que atua na região central de São Paulo e é formado por
mais de duas mil pessoas, entre adultos, crianças e jovens. Defendemos
o direito fundamental à moradia, garantido na Constituição e
nos direitos universais da humanidade. Moradia não se resume a
propriedade física. “Lar” quer dizer muito mais e inclui vida familiar,
segurança, saúde, educação, acesso ao transporte e a convivência
comunitária. (MSTC, s. d., como citado em Moraes & Luz, 2023, p. 3)
Atualmente, o MSTC coordena cinco ocupações e um empreendimento
— Residencial Cambridge — concluído por meio do programa federal Minha
Casa Minha Vida Entidades. Recentemente, obteve seleção para construção de
200 unidades pelo Programa Pode Entrar, vinculado ao município de São Paulo
(Diário Ocial da Cidade de São Paulo (São Paulo, 2022, p. 1).
O Movimento possui como objetivo: “melhorar a qualidade de vida,
habitação, saúde, lazer e cultura para todos os associados e aqueles que
querem fazer parte do MSTC, defendendo, organizando e desenvolvendo
trabalhos sociais gratuitamente”. Através dos grupos de base, em encontros
semanais e/ou quinzenais, que ocorrem em quatro localidades da cidade de
São Paulo, são debatidos direitos e deveres no acesso à cidadania, a partir dos
eixos: empoderamento do trabalhador de baixa renda como sujeito de direitos;
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valorização da educação infantil e da saúde da família; vida em comunidade
e trabalho em conjunto para autogestão; direito à moradia; importância
da regularização da documentação dos associados; acesso a fundos de
investimento social para a habitação; a relação do Estatuto da Cidade com os
Movimentos Sociais; direito à cidade; incentivo à participação nas agendas
dos órgãos públicos (Escola da Cidade, 2019, p. 5). A partir dos debates —
através dos grupos de base e também com a participação da sociedade civil
— o Movimento busca valorizar e incentivar a participação popular como
instrumento de formação de políticas públicas.
Sobre as tensões sociais circunscritas ao Residencial
Mediante a participação popular e tensões sociais provocadas,
confrontando o status quo identicado na provisão de moradias, o MSTC
conseguiu reverter o direcionamento do imóvel que atualmente ocupa
legalmente. O antigo hotel de luxo de São Paulo, desapropriado pelo município
após diversos estudos para requalicação e negociações com os proprietários
— que possuíam dívidas de impostos havia mais de dez anos —, seria
inicialmente direcionado para a iniciativa privada, por meio de parceria público
privada. Ao revés, foi destinado para doação ao MSTC e posterior seleção em
programa federal de nanciamento para reforma (Moraes, 2023).
O Filme “Era o Hotel Cambridge” (Aurora Filmes, 2016), em que a
Ocupação foi tema central, incluindo a atuação de personagens reais, recebeu
diversas premiações, o que possibilitou posterior experiência de Residência
Artística1, situação que, além da reconguração da forma de apropriação do
espaço — que garantiu, ao Residencial, a Premiação na Categoria Apropriação
Urbana pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) em 2016,
possibilitaram, ainda, a projeção do Movimento e da própria Ocupação a
segmentos que não acessariam suas demandas, potencializando sua projeção e
luta2:
A partir destas perspectivas, é possível inferir que o edifício, no decorrer
de sua existência, como Hotel de Luxo, Hotel decadente e inativado, bar
alternativo, ocupação, cenário de lme, espaço de Residência Artística e,
posteriormente, um Residencial, constituiu, em si, a representação do ‘fazer
cidade”, como denida por Agier (2014).
O fazer-cidade deve ser entendido como um processo sem m,
contínuo e sem nalidade. Ele faz sentido no contexto de uma
expansão contínua dos universos sociais e urbanos. Eis por que parece
possível elaborar a hipótese teórica (e a aposta política) segundo a qual
o fazer-cidade é uma declinação pragmática, aqui e agora, do “direito à
cidade”, sua instauração. O movimento é essencial nesta concepção da
cidade como construção permanente. (Agier, 2014. p. 491)
Durante a luta do Movimento, o Hotel Cambridge — apesar de ter sido
identicado em Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) pelo Plano Diretor
Estratégico do Município de São Paulo (São Paulo, 2014) — seria destinado,
em sua maioria, para famílias com renda superior a 6 salários-mínimos, o
1 A Residência Artística
Cambridge ocorreu no
período de março de 2016
a janeiro de 2017, com a
presença de cinco residentes
na Ocupação Cambridge. O
trabalho teve como objetivos
centrais: a criação de trabalhos
colaborativos; o uso das
áreas comuns como lugar de
trabalho; a formação da rede de
interlocução com a comunidade,
com foco na duração das
iniciativas para além do período
de residência. Destacou-se a
colaboração de psicoterapeutas,
para sessões em grupo entre
residentes e membros da
ocupação (Yzquierdo, 2016).
2 A projeção do Movimento e
da gura pública de Carmen
Silva a outros segmentos sociais
foi identicada por meio de
pesquisa de veiculações junto
à mídia acerca da líder Carmen
Silva (Moraes & Luz, 2022).
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que circunscreve sua disputa ao caráter hegemônico, imposto pela relação
Capital-Estado, na aplicação e interpretação das leis. A inércia do município,
considerando o tempo decorrido desde o m das atividades do hotel e o
estudo de seu direcionamento para faixas maiores de renda condicionou que,
como forma de denúncia da inação do poder público na garantia da função
social de propriedade, o edifício do antigo hotel fosse ocupado, em 2012, pelo
Movimento Sem Teto do Centro (Figura 3).
Entre a ocupação, ocorrida em 2012, e a entrega do Empreendimento
— atualmente designado Residencial Cambridge — passaram-se mais de
dez anos. Não obstante as inúmeras adversidades, dentre elas: a luta para
doação do terreno; desaos esperados em obras de requalicação; atraso
nos pagamentos, devido a restrições scais; processo de criminalização, que
envolveu os líderes do Movimento; e as graves restrições por ocasião da
pandemia, o empreendimento foi nalizado, com a participação ativa dos
moradores em assembleias, com o atendimento de suas demandas como, por
exemplo, mudança do projeto inicial, para instalação de tanque em todos os
banheiros, dispensando a lavanderia coletiva que fora proposta no projeto
original (Hodapp, como citado em Moraes, 2023).
DO ESTUDO DE CASO
Em nossa pesquisa, identicamos que a participação cidadã dos membros
do Movimento ocorreu em todas as fases do processo de garantia de posse
do imóvel, projeto e obras de reforma, compreendendo, em momentos iniciais,
o ato da ocupação e acampamento em frente à Prefeitura, como forma de
protesto contra o direcionamento previsto pelo município — momento
em que foi negociado efetivamente o direcionamento para entidades. Isto
foi determinante para a reversão relatada e a conquista, pelo MSTC, da
transferência do imóvel com encargos, ocorrida em dezembro de 2015 (São
Paulo, 2022).
Figura 3. Registro do estado
do edifício durante a ocupação.
Fonte: Jardiel Carvalho/R.U.A
Foto Coletivo, 28 nov; 2016
RESULTADOS
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Assim, a história do hotel, que foi objeto do “fazer cidade” (Agier, 2015)
por meio da luta do MSTC, a manutenção da força coletiva do Movimento
— mesmo diante de tantas adversidades —, a potência das redes criadas e a
experiência dos atores escolhidos pelo Movimento, indicam possibilidades que
se contrapõem à realidade imposta, relacionadas, as primeiras, ao protagonismo
dos demandantes no acesso a seu direito e a uma contraposição à localidade
periférica predominante.
Como preconizou Maricato (1996), no que se refere à importância da
transformação no plano ideológico e sobre a conscientização dos excluídos
acerca de seus direitos, é possível identicar que, de forma empírica e
efetivamente praticante, o fenômeno objeto do presente estudo intenta,
mediante seu movimento de fazer cidade, uma possível “ruptura” do status quo.
Ressalta o MSTC:
[...] Enfatizamos, portanto, o reconhecimento da moradia como direito
(garantido na constituição federal brasileira de 1988), bem como a
ampliação do conceito de morar, não apenas como um teto, mas como
direito à cidade, incluindo: saúde, educação, mobilidade, cultura, segurança
e toda a infraestrutura para uma vida digna numa grande metrópole
excludente como São Paulo, na qual a especulação imobiliária tem
causado graves consequências à vida de pessoas sem teto e de baixa
renda, majoritariamente negras. (Escola da Cidade, 2019, p. 4)
A consonância da estratégia e ações do movimento com seu escopo
conceitual, e sua respectiva contribuição ao plano ideológico, cuja necessidade
foi destacada por Maricato (1996), pôde ser evidenciada, por meio das
pesquisas bibliográcas e de campo realizadas. A diversidade de espectros de
suas ações demonstra a complexidade de sua estruturação e a sosticação de
seus instrumentos de luta no decorrer de seu amadurecimento, conforme se
buscou demonstrar, a partir dos marcos históricos, sintetizados na Figura 4.
Em relação à ação governamental para destinação do imóvel, cabe destacar
que esta foi circunscrita ao mesmo contexto de sobreposição de interesses
privados aos públicos, superado mediante resistência do Movimento e atuação
nos conselhos participativos. “Por que não aproveitar o patrimônio público
para viabilizar 100% de habitações de interesse social?” (Santo Amore et al.,
2015, p. 1).
A organização do espaço, realizada mediante a ocupação inicial —
momento em que o edifício foi limpo, removeu-se uma imensa quantidade de
lixo e foram realizadas instalações de eletricidade e adequação de instalações
hidráulicas — se deu, primeiramente, pela distribuição de ambientes adequados
para seus ocupantes, conforme organização familiar ou pessoal, contanto
com ambientes coletivos, dentre os quais se destacam: espaço com biblioteca
e computadores para utilização comum, cozinha comunitária, ambiente
para atividades e brincadeiras infantis, saguão de entrada com espaços para
permanência, recepção e controle de acesso, entre outros. Todas as decisões,
cotidianas ou especiais, sempre são tomadas coletivamente, mediante
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Figura 4. Linha do tempo com
marcos históricos do MSTC.
Fonte: As autoras, a partir de
dados MSTC.
assembleias, contando, recorrentemente, inclusive, com participação externa de
convidados, dentre as quais, contou-se em algumas ocasiões com a presença
de uma ou de outra das autoras do presente estudo, e, especialmente, com
a presença de prossionais e técnicos colaboradores, durante o projeto de
retrot e obras. Após a nalização das obras, os ambientes se encontravam em
plenas condições de uso, com qualidade, e adaptados às demandas coletivas e
individuais, incluindo-se aspectos estéticos de escolha circunstanciada (Figura 5).
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Figura 5. Espaços do
Residencial Cambridge e da
Ocupação 9 de Julho. Fonte:
Da direita para e esquerda, de
cima para baixo: Residencial
Cambridge: Saguão de entrada
térreo; Brinquedoteca; Visão
externa do edifício desde a
avenida 9 de Julho; Sala de
reuniões e estudos; Ocupação
9 de Julho: Biblioteca; Sala
de reuniões; Marcenaria.
Residencial Cambridge:
Espaço para futuro uso coletivo
provisoriamente destinado a
guarda de bicicletas. Fonte:
Autoral. Imagens realizadas
entre fevereiro e março de 2023.
Imagem externa Googlemaps,
capturada 24 de janeiro de
2024.
Diante dos fatos identicados, pode-se constatar a indelegável atuação
municipal para viabilização do presente estudo de caso, efetuando o
levantamento dos imóveis ociosos e com possibilidades de desapropriação,
efetiva negociação do imóvel e direcionamento para Entidade mediante
Chamamento Público, situações que possuem previsão legal e poderiam ser
replicadas como processo fundamental na revitalização de áreas centrais. A
despeito desta atuação determinante para a viabilização do empreendimento,
a conquista de seu direcionamento para habitação de interesse social teve,
como fator preponderante, a participação cidadã, incluindo arquitetos,
assessores técnicos, acadêmicos e representantes de movimentos sociais,
na qualidade de membros do Conselho Municipal de Habitação. O
questionamento das ações deste órgão permitiu a retirada de pauta, por
duas vezes, da proposta, o que gerou o lapso temporal necessário para
atuação especíca do MSTC, que, entre outras ações, organizou a própria
Ocupação e acampamento em frente à Prefeitura Municipal (Moraes,
2023) e, posteriormente, na elaboração do projeto técnico e social e no
acompanhamento da construção e entrega do Residencial.
Em entrevista, por ocasião de trabalho apresentado na 11ª Bienal
de Arquitetura de São Paulo, Carmen Silva destacou a importância da
participação dos movimentos sociais nos conselhos municipais, o que
conguraria uma possibilidade efetiva de interferência na política pública, em
consonância com suas demandas:
DISCUSSÃO
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CONCLUSÕES
Por isso que nós somos temidos. Nossa organização faz com que o
Estado nos tema, porque somos um conjunto organizado, e não um
conjunto alienado. É uma bobagem esse temor, porque a única coisa
que queremos é fazer parte desse Estado. E como a gente faz parte
do Estado? Participando dos conselhos e suas respectivas eleições.
Os conselhos são uma grande descentralização do poder público que
garante à participação popular scalizar e implementar. (Ferreira, 2017,
como citado em Studio XRio & Columbia GSAPP, 2019, p. 8, grifo
nosso)
No universo de nosso estudo de caso, a despeito das diculdades impostas
ao MSTC, pode-se vericar que a opção tomada pelo Movimento ao se
associar a parceiros com experiência em Assistência Técnica para Habitação de
Interesse Social (ATHIS), institucionalizada pela Lei n. 11.888 (2008), permitiu
o envolvimento de colaboradores e a discussão a partir de informações e
propostas técnicas, perante a necessidade de superar os inúmeros desaos
enfrentados. Estes desaos eram decorrentes tanto dos limites do programa,
sobrecarga de atividades impostas ao Movimento e ausência de reajuste do
investimento, bem como por fatores externos que impactaram de forma
importante a viabilização do Empreendimento: restrição scal do governo
federal, restrições da pandemia, impacto inacionário e criminalização de
lideranças do movimento. Mediante estes dados, pode-se inferir a importância
da ATHIS para a realização de projetos similares, situação que poderia também
ser estimulada pelos programas governamentais em todas as suas esferas.
De acordo com nossa análise qualitativa, cabe também destacar a estrutura
organizacional do Movimento e, principalmente, sua capacidade de se apoiar
nos demais atores sociais, para fomentar a construção de seu conhecimento,
ampliando o potencial de suas demandas e fortalecendo sua capacidade de
luta, processo que Carmen Silva, durante a formação de sua gura pública,
nomeia como “troca de saberes [...] com que todos aprendem um pouco”
(Ferreira, 2017, como citado em Studio XRio & Columbia GSAPP, 2019, p. 8).
Buscou-se demonstrar a importância dos movimentos sociais e da
participação cidadã como forma de compungir o Estado, por meio de sua
atuação política, em seu dever de prover moradia social, e, ainda, de garantir
que os imóveis sob sua gestão exerçam sua função social, obrigações que,
sem as tensões provocadas, poderiam não ultrapassar o avanço normativo,
tendo em vista o viés hegemônico identicado nas políticas, programas e ações
governamentais.
Sob o aspecto normativo, cabe destacar que, no Brasil, o Estatuto
da Cidade (2001) estabeleceu diretrizes gerais para a política urbana,
regulamentando os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, com a
denição de instrumentos que permitiriam a gestão municipal, dentre os
quais: concessão de direito real de uso; concessão de uso especial para ns
de moradia; parcelamento, edicação ou utilização compulsórios; usucapião
especial de imóvel urbano; direito de superfície; direito de preempção; outorga
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REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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fundiária (Brasil, 2001). Não obstante, o lapso entre a primeira ação de
execução de dívida tributária do Hotel, em 1999, e sua efetiva desapropriação,
ocorrida mediante acordo entre as partes, em 2012, demonstram os desaos a
serem percorridos para a sua efetiva utilização (Moraes, 2023, p. 46).
A postura do MSTC em abrir as portas da Ocupação para residência
artística e outras atividades culturais, acadêmicas e de geração de renda, que
ocorrem no Residencial Cambridge, e para atividades culturais, de educação,
lazer e geração de renda na Ocupação Nove de Julho, localizada ao lado, nos
pareceu uma estratégia acertada. O Movimento considerou a possibilidade de
agregar à sua luta atores sociais que não seriam atingidos, se esta postura não
fosse adotada. Esta metodologia pode colaborar, se replicada, para a introdução
formal dos atores populares, de modo sistêmico, no Estado e em relações sociais
mais plurais. A estratégia do Movimento, ao aliar-se com diversos segmentos da
sociedade, oportunizando tais contatos para potencializar seu conhecimento e
seu poder simbólico, pode representar um importante indutor de alternativas
para a luta por moradia no Brasil, conforme identicado nesta pesquisa.
O recorte de nosso estudo de caso situa-se, pela centralidade da localização
e protagonismo, até o momento, no campo das exceções. No entanto, a
sistematização de seu êxito pode apontar caminhos para a adequação das
políticas públicas existentes.
Como reete Carmen Silva (Ferreira, 2017, como citado em STUDIO XRio
& GSAPP, 2019, p. 8), “todo direito sem ação está morto”. A gestão pública
deveria basear-se em métodos de controle quantitativos, como já existem,
mas também qualitativos de desempenho, que poderiam fundamentar políticas
públicas territoriais e baseadas em evidências.
Considerando o status quo identicado, no que se circunscreve a este
estudo de caso, a articulação e luta dos movimentos sociais se demonstrou
como importante instrumento de contraposição e indução para que as políticas
públicas possam ultrapassar o avanço formal, e, a reforma urbana, o campo da
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