Migrações e assentamentos rurais na região da capital brasileira1

Migration and rural settlements in the capital region of Brazil
Migración y asentamientos rurales de la región capital de Brasil

Resumen

El presente artículo muestra los resultados de las investigaciones llevadas a cabo en los asentamientos rurales en la región de los alrededores del Brasilia, entre los años 2001 a 2007. Uno de los objetivos fue analizar las razones de los trabajadores rurales para emigrar del campo hacia Brasilia, y después para las zonas de asentamientos rurales en el municipio de Padre Bernardo, en región que rodea a la capital de Brasil. Uno de los caminos elegidos para comprender lo propuesto fue la utilización de entrevistas y el registro de historias orales que permitieron comprender este proceso de los migrantes en esta región. De esta forma investigación indicó que para estos trabajadores migrantes que se sumaron al proceso de ocupación de tierras en la región estudiada el asentamiento rural puede ser visto, por un lado, como un local de reproducción de valores comunes al origen y trayectoria de los migrantes. Y, por otro, como una estrategia para superar los problemas encontrados en la ciudad, convirtiéndose en "el lugar" de su reproducción social. Además, los asentamientos son importantes para la generación de ingresos y empleos agrícolas y no agrícolas, y por su contribución al mantenimiento de la población rural en el campo.

Resumo

Este trabalho se fundamenta nos resultados de pesquisa realizada em assentamentos rurais na região do Entorno do Distrito Federal, entre os anos de 2001 a 2007. Um dos objetivos foi analisar as razões que levaram trabalhadores rurais a migrarem do campo para Brasília (capital do Brasil), e depois para áreas de assentamentos rurais, no município de Padre Bernardo na região do entorno da capital brasileira. Um dos caminhos escolhidos para entender o que foi proposto foi as entrevistas e coleta de relatos orais que permitiram compreender esse processo de migração nessa região. Assim, a pesquisa apontou que para esses trabalhadores migrantes que entraram no processo de ocupação de terras na região estudada o assentamento rural pode ser visto, por um lado, como um local de reprodução dos valores comuns à origem e à trajetória dos migrantes e, por outro, como uma estratégia de superação dos problemas encontrados na cidade, tornando-se “o lugar” de sua reprodução social. Além disso, os assentamentos são importantes para a geração de renda e emprego agrícola e não agrícola, para a contribuição e para a manutenção da população rural no campo.

Summary

This work is based on the results of research conducted in rural settlements in the region surrounding the Federal District, between the years 2001 to 2007. One goal was to analyze the reasons for rural workers to migrate from the countryside to Brasilia (capital of Brazil), and then to areas of rural settlements in the municipality of Padre Bernardo in the region surrounding the capital of Brazil. One of the paths chosen to understand what was proposed were the interviews and collecting oral histories that allowed understands this process of migration in this region. Thus, the research showed that for these migrant workers who entered the process of land occupation in the study area the rural settlement can be seen on the one hand, as a breeding site for common values to the origin and trajectory of migrants, and another, as a strategy to overcome the problems encountered in the city, becoming "the place" of their social reproduction. Moreover, the settlements are important for income generation and non-agricultural employment, and for the contribution to the maintenance of the rural population in the field.

Palabras claves

Asentamientos rurales – Distrito Federal – Brasil y la migración

Palavras chaves

Assentamentos – Distrito Federal – Brasil e Migrações

Keywords

Settlements rural – Distrito Federal – Brazil and Migration

Introdução

Este trabalho se fundamenta nos resultados de pesquisa realizada em assentamentos rurais na região do Entorno do Distrito Federal, entre os anos de 2001 a 2007. É importante destacar que essa região é constituída pelo Distrito Federal (formado por Brasília e as cidades satélites), alguns municípios do Estado de Minas Gerais e do Estado de Goiás. Ocupa uma região de 55.434,99 quilômetros quadrados, e sua população é de aproximadamente 3,7 milhões de habitantes.

Assim, um dos objetivos deste texto é analisar as razões que levaram trabalhadores rurais a migrarem do campo para o Distrito Federal (Brasília: capital do Brasil), e depois para áreas de assentamentos rurais, em municípios do entorno da capital brasileira. O questionamento sobre o processo migratório desses trabalhadores rurais surgiu de observações feitas no desenvolvimento de trabalhos de campo junto a esses assentados.

Na região da pesquisa, diversos assentamentos criados ao final dos anos 90, do recente século passado, foram constituídos por trabalhadores de origem rural que migraram de várias regiões do Brasil para trabalhar, sobretudo, na prestação de serviços e na construção civil na capital brasileira, antes de chegarem aos assentamentos. Assim, depois de muitos anos ou até décadas morando na cidade, vivendo em condições difíceis a reforma agrária abriu espaço para esses migrantes ingressarem em movimentos sociais e conseguirem terra para trabalhar, neste estudo em assentamentos rurais.

É importante destacar que na região do entorno da capital brasileira, a luta pela terra não aconteceu de forma diferente, das demais regiões brasileiras, principalmente por causa da sua localização estratégica, da estrutura fundiária que beneficia os grandes especuladores de terras e da monocultura modernizada, associada à pecuária melhorada, que beneficiam as grandes propriedades. Além disso, o processo de redemocratização brasileiro possibilitou um cenário político-social favorável a formação de assentamentos rurais no Brasil. E, a partir do final da década de 1970, com mediadores ligados principalmente à igreja católica e posteriormente com o movimento sindical nos anos de1980, a bandeira por reforma agrária passou a ganhar força e culminou com a ocupação de áreas improdutivas em diversos estados brasileiros. Esse cenário contribui para a criação de diversos assentamentos rurais no país.

Na região da capital federal a intensificação da luta pela terra na última década do seculo XX e as pressões dos movimentos de luta pela terra forçaram o Ministério Extraordinário de Política Fundiária e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária a criarem, em dezembro de 1997, a Superintendência Regional do Distrito Federal e Entorno - SR(28), regional ligada ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), com objetivo de amenizar a situação fundiária da região da capital Federal.

A área de atuação da SR (28) compreende todo o nordeste do Estado de Goiás, o noroeste do Estado de Minas Gerais e o Entorno do Distrito Federal. Até abril de 2010 eram 176 assentamentos, com cerca de 13.169 famílias assentadas. É importante destacar que no âmbito político brasileiro o INCRA é responsável pela criação dos assentamentos rurais do país.

Sobre o termo assentamentos (Medeiros & Leite, 2004) apontam que o termo assentamento rural foi criado dentro da esfera das políticas públicas para designar o tipo de intervenção fundiária por parte do Estado, que envolve diversas ações como desapropriação de imóveis rurais, compra de terra e utilização de terras públicas, para assentar posseiros, fixar trabalhadores ameaçados de expulsão de terra e de trabalhadores organizados pelos diversos movimentos sociais.

Nesse sentido, (Martins, 2003) aborda que, sociologicamente, nos assentamentos rurais estaríamos numa situação rica de possibilidades interpretativas, um espaço heterogêneo de grupos sociais, constituído por famílias de trabalhadores que, antes não possuíam terras e, dessa forma, se apossam formalmente das mesmas.

Assim sendo, no caso desta pesquisa a maioria dos migrantes que iniciaram o movimento de ocupação de terras nesse município eram de famílias que se encontravam desempregadas nas cidades satélites do Distrito Federal, principalmente Recanto das Emas, Samambaia, Ceilândia e Céu Az, que tinham uma trajetória: campo-cidade- assentamento. Assim, grande parte desses trabalhadores depois de anos ou até décadas morando na cidade, descobrem que o sonho da cidade acaba não acontecendo. E, portanto, resolvem buscar por meio da organização de movimentos populares, condições mínimas de cidadania e, dessa forma, muitos ingressam na luta pela terra, e vão migrar para assentamentos rurais.

Portanto, este artigo tem por objetivo principal apresentar alguns apontamentos acerca do processo de migração para assentamentos rurais na região do Entorno do Distrito Federal, ou seja, da capital brasileira que por excelência é uma região constituída principalmente por migrantes e, que ainda atrai muitas pessoas.

Metodologia

O caminho metodológico utilizado nesse trabalho foi um estudo de caso de assentamentos rurais localizados no município de Padre Bernardo, Estado de Goiás, a cerca de 100 km de Brasília. Localizado na mesorregião do leste goiano e na microrregião do entorno do Distrito Federal, como pode ser observado na figura 1.

Figura 1: Localização do município de Padre Bernardo.
Fonte: Oliveira, 2007.

No município, até o ano de 2007, existiam oito assentamentos, sendo quatro localizados na região Pé de Serra onde ocorreu a coleta dos dados, ou seja, nos assentamentos: Vereda I, Vereda II, Boa Vista e Água Quente, nestes quatro assentamentos estão assentadas cerca de 450 famílias.

Tabela 1: Número de famílias e áreas dos assentamentos em Padre Bernardo
Assentamentos Número aproximado de Famílias Área (ha) Tamanho médio de cada chácara em ha Data da desapropriação
Boa Vista 145 4.380,0339 15-17 17/12/1998
Água Quente 66 2.829,3041 28 17/12/1998
Vereda I 70 2.063,7800 20 21/12/1999
Vereda II 163 3.760,7900 12-15 23/08/2000
Colônia I 24 598,46 Sem informação 15/09/1995
Colônia II 23 590,00 Sem informação 20/06/1997
Jacinto Durães 60 1.623,82 Sem informação 23/08/2000
G-13 50 1.245,50 Sem informação 25/11/2005
Total 601 17.091,69 - -

Fonte: Pesquisa de campo 2006 e INCRA (SR-28)

Assim sendo, um dos caminhos escolhidos para a pesquisa foi a observação e análise do dia a dia nos assentamentos, além das entrevistas semiestruturadas, que permitiram entender a dinâmica de rotatividade nos assentamentos pesquisados. Para isso, utilizou-se das entrevistas como ferramentas metodológicas de coleta de dados, por acreditar que seria possível perceber as expressões, tensões e estratégias, bem como os mecanismos que orientam o comportamento dos atores nesses espaços. Para tanto, foram entrevistadas 20 famílias: sete no assentamento Vereda I, cinco no assentamento Vereda II, quatro no assentamento Boa vista e quatro no assentamento Água Quente. As perguntas versavam, principalmente, sobre o processo de migração vivido por essas famílias.

As entrevistas servirão de ferramenta de trabalho para se construir e entender as histórias individuais e do grupo a ser pesquisado. Dessa forma, a história oral pode se apresentar como o melhor caminho, pois se aproxima da experiência vivida pelo ator envolvido na pesquisa. É importante ressaltar que a história oral possui definição muito mais complexa do que as outras técnicas qualitativas se constituindo como todo relato, gravado e preservado, que tenha por base a oralidade, visando preencher lacunas nos documentos escritos. Não é uma acumulação simples de dados, pelo contrário, é uma técnica que visa revelar significantes para a compreensão da sociedade.

Para (Menezes, 1992), em seus estudos com migrantes, os relatos orais feitos por estes são importantes para compreender uma história vinda de baixo, que nos permite compreender a dimensão existencial que se manifesta na luta pela terra no Brasil, por exemplo. Essas histórias contadas por migrantes possibilitam o conhecimento do meio social em que vive o indivíduo. Uma vez que o pesquisador procura recuperar através de sua história de vida a história da sociedade, o seu funcionamento, as transformações ocorridas ao longo do tempo e como isso reflete na vida das pessoas.

Nesse sentido, nesta pesquisa os relatos orais permitiram reconstruir a trajetória de vida de migrantes para áreas de assentamentos rurais. O conceito que adotamos para trajetória vai além de um deslocamento geográfico, pois procuramos ressaltar acontecimentos vividos por migrantes que passaram por diversos processos de mudanças sociais até chegarem ao assentamento.

Dessa forma, procurou-se analisar a trajetória dos assentados, considerando as posições sociais ocupadas por eles ao longo do tempo, passando de camponeses a trabalhadores assalariados na cidade, até chegarem ao assentamento, percorrendo uma longa trajetória até se tornarem assentados.

A região foi selecionada para a pesquisa por apresentar características que pareciam favoráveis para a escolha destes assentamentos. Primeiramente, o pesquisador já tinha inserção na região. Assim, ter participado na elaboração do Plano de Desenvolvimento de Assentamentos (PDA), no ano de 2001 em dois assentamentos da região (Vereda I e II) possibilitou maior aproximação e o estabelecimento de laços de confiança junto aos assentados. É importante destacar que naquele ano (2001) os assentados tinham conseguido suas chácaras recentemente, um processo de conquista que começou ao final de 1998, quando ocorreram as primeiras ocupações na região Pé de Serra.

A segunda característica era tratar-se de uma região basicamente formada por famílias migrantes, que já tinham tido uma experiência de anos na cidade, sobretudo em Brasília, e ao longo dos últimos anos haviam se deslocado para áreas de ocupações de terras na região, portanto, eram atores sociais que já estavam acostumados a migrar. Nesse sentido, tomamos como exemplo o caso do assentamento Vereda II, onde a grande maioria das famílias que participaram da formação dos assentamentos realizaram uma migração longa.

Para isso, citamos como exemplo dados dos chefes de família do último acampamento da região no atual assentamento Vereda II, em maio de 2001, existia nesse local 96 famílias acampadas, com origem em vários estados da federação, (ver tabela 2 logo abaixo).

Tabela 2: Estados de origem dos acampados.
Estados da Federação Quantidade de acampados
Goiás 20
Minas Gerais 19
Bahia 13
Maranhão 12
Pernambuco 6
Piauí 5
Distrito Federal 5
Ceará 5
Rio grandedo Norte 3
Paraíba 3
Tocantins 2
Alagoas 1
São Paulo 1
Pará 1
Total 96

Fonte: Pesquisa de campo.

É importante ressaltar que antes de vir para o acampamento a grande maioria dessas famílias viveu em algum momento de sua trajetória em cidades satélites do Distrito Federal.

Também, foram utilizadas algumas técnicas de Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador que consiste numa conjugação de métodos e técnicas de intervenção participativa que permite obter informações qualitativas e quantitativas em curto espaço de tempo. (Pereira, 1998).

Entre estas técnicas foram utilizadas a Eleição de Prioridades que consiste na apresentação de demandas existentes na comunidade, por parte dos assentados, tendo como objetivo elegê-las em ordem crescente de prioridade. A eleição é feita através de uma simulação, utilizando-se de cartolinas coloridas, cortadas em forma de notas que simbolicamente representam dinheiro para atribuir valores aos votos.

A realização da técnica Desejo Temporal, ocorreu apenas no assentamento Vereda I, para isso os assentados dividiram-se em grupos para discutirem o plano do assentamento, dentro de um horizonte temporal de dez, cinco e um ano. Por meio desta técnica foi possível identificar a visão dos assentados em relação aos seus objetivos no curto, médio e longo prazo e as respectivas limitações para a realização dos mesmos.

Resultados

  1. Trajetórias de migrantes para assentamentos rurais

Um dos principais elementos para a dinâmica da ocupação da região conhecida hoje como o Entorno do Distrito Federal, foi à instalação de grandes fazendas de gados a partir do século XVII. A região de cerrado era propícia para o desenvolvimento da pecuária extensiva. Além das fazendas de gado, em princípios do século XX houve um pequeno ciclo da borracha a partir de espécies nativas do cerrado, o que favoreceu o processo de ocupação da região. (Medeiros & Leite, 2004).

Em meados do século XX com a construção de Brasília e a construção da hidroelétrica de Três Marias, ocorreu um acelerado crescimento na região. A construção de Brasília contribuiu para uma nova etapa na reorganização do espaço territorial, sobretudo no Entorno do Distrito Federal, nessa época, nove municípios (Abadiânia, Alexânia, Cabeceiras, Cristalina, Formosa, Luziânia, Pirinópolis, Planaltina e Unaí) faziam parte da região do Entorno.

Desta forma a criação da nova capital brasileira no coração do país no final da década de 1950, transformou a região num novo pólo de atração de migrantes. Assim, com a construção da nova capital a região torna-se atrativa para migrantes oriundos de várias regiões brasileiras. Essa realidade corrobora para o intenso fluxo migratório que ainda ocorre nessa região.

É importante destacar que as obras para a construção da nova capital brasileira levaram 36 meses para ser concluída e no dia 21 de abril de 1960, Brasília é inaugurada. Prevista para abrigar 500 mil habitantes, o Distrito Federal chegou ao ano 2010 com mais de dois milhões e meio de habitantes, de acordo com dados do Censo Demográfico do IBGE 2010, apresentados no gráfico 1, logo abaixo.

Gráfico 1: Evolução do número de habitantes no Distrito Federal.
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010).

Assim desde a sua construção a nova capital brasileira, se torna um importante pólo de atração de migrantes, que chegam quase todos os dias atraídos por diversos motivos. Nesse sentido, (Gouvêa, 1998) aponta que com o início das obras de construção de Brasília, deflagrou- se um processo migratório caracterizado por contingentes populacionais que se diferenciaram quanto à origem e à função desempenhada na nova cidade. Vinham principalmente do Nordeste com objetivo de melhorar de vida. Portanto, migrar para Brasília era visto como alternativa para conseguir melhorar de vida, ou mesmo como um recomeço de vida em outro local. Portanto, era uma estratégia de reprodução adotada por esses atores que migraram aos montes para o DF.

Seguindo essa linha de raciocínio podemos refletir que a migração pode ser interpretada como uma estratégia de reprodução conduz-me às observações feitas por (Garcia Jr., 1989), que entende que migrar pode ser uma estratégia importante para a reprodução social do migrante. Portanto, a migração para as cidades industriais significava uma forma de ‘escapar da sujeição’, o que passou a ser associado à noção de liberdade, já que com o dinheiro obtido no Centro-Sul, podiam ser compradas terras para famílias cultivar e sair da condição de sujeitos para condição de libertos. Nesse estudo, o autor observou que os trabalhadores organizam seu discurso por meio de categorias como: sujeito morador, aquele que morava nos domínios dos senhores de engenho, submetido às suas ordens, caracterizando assim uma situação de sujeição; liberto, aquele pequeno produtor que morava ao redor da grande propriedade.

Isso nos conduz a observações similares feitas por (Woortmann, 1990), em que o autor considera que a migração para o camponês faz parte das suas práticas de reprodução. Como exemplo, o autor cita que a migração é utilizada por esses camponeses como mecanismo para evitar o fracionamento das terras da família. Nestes casos, as famílias estimulam alguns filhos a migrar para São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, desistindo de suas heranças para outros membros da família, evitando, assim, o fracionamento da propriedade.

De acordo com dados da (Codeplan, 1999), no período mais intenso da construção de Brasília, as correntes migratórias constituíam o principal fator formador da população do Distrito Federal, com 358.014 e 488.546 migrantes nas décadas de 1960/70 e 70/80, respectivamente. No período de 1980 a 1991, o número de migrantes diminuiu significativamente, apresentando média anual de 8.966 pessoas, voltando a crescer entre 1991/96, atingindo média anual de 19.229 migrantes. No trecho da entrevista abaixo é possível observar a decisão de um migrante do interior do Estado do Ceará, migrar para Brasília.

Trecho de uma entrevista sobre a vinda de um migrante para Brasília.

P: Qual foi o motivo do Sr. sair do Ceará?
R:
O motivo de eu sair de casa foi a influência de Brasília. A influência era muito grande. Aí eu resolvi e eu falei com papai. E tinha umas empresas que formavam os paus-de-arara, onde davam a passagem para a gente vim e o dinheiro das despesas na estrada, para gente vim trabalhar na construção. Foi por isso que eu resolvi vim embora pra cá (...).

P: Mas porque o Sr. resolveu deixar o Ceará?
R:
Foi caçar melhorar de vida, porque lá nunca teve melhora de vida, porque o Nordeste só é bom para quem tem dinheiro e nunca saiu de lá. Porque, mesmo quem tem dinheiro e sai de lá para vim para o Sul, acha coisa melhor. (...) E a imagem de Brasília que eu tinha, era das pessoas que vieram pra cá em 1957, que voltava para o Ceará e falava que Brasília era muito bom. Era o lugar de ganhar dinheiro. Então a imagem que eu tive foi a de melhorar de situação, é por isso que eu me afastei da minha terra, dos meus pais. Foi para melhorar a minha situação. Quer dizer, quando eu cheguei em Brasília eu comecei a ganhar dinheiro, coisa que eu não tinha no Ceará. [Sr. A, veio para Brasília em 1959, com 20 anos, trabalhar na construção civil].

Para (Gouvêa, 1998), as pessoas vinham de todas as partes devido à intensa propaganda existente na época, que estimulava os brasileiros a migrar para construir a nova capital, que para muitos era o tão sonhado eldorado. Assim, a região do entorno do Distrito Federal se consolidou como região de grande atração de mão de obra, em especial de nordestinos, que vinham em busca de emprego e de acesso a serviços públicos. Nesse sentido, o autor aponta que a migração para Brasília estava diretamente relacionada com a situação difícil que o migrante encontrava em seu local de origem. Constatou também que a vinda para Brasília estava diretamente atrelada com a busca de emprego e com melhores condições de assistência médica, que, na maioria das vezes, apesar das deficiências dos serviços prestados em educação e saúde em Brasília, ainda eram muito superiores aos existentes na maioria das regiões do país.

Essa onda de migração para a nova capital, se por um lado passou a demandar uma quantidade cada vez maior de moradias, por outro, a cidade passou a sofrer um intenso processo de favelização e degradação da moradia. Com isso, passaram a surgir às chamadas cidades satélites ou regiões administrativas: como o Núcleo Bandeirante, em 1956; Paranoá, em 1957; Taguatinga, em 1959; em seguida, a cidade do Gama e do Sobradinho em 1960, entre outras, a última criada em 2009, denominada Vicente Pires. Assim sendo, em 2011 já eram cerca de 30 as regiões administrativas que compunham o Distrito Federal. É importante destacar que as regiões Administrativas ou RA’s estão divididas entre um a 30. Estas regiões foram criadas para facilitar a administração das localidades do Distrito Federal e hoje a RA 01 é Brasília.

Segundo (Oliveira, 2007), a migração para as regiões do entorno como municípios como Luziânia, Padre Bernardo e outros acaba provocando pressão sobre certos serviços de atendimento público, como os de saúde e educação. No município de Padre Bernardo, com a constituição de assentamentos rurais na região o secretário de saúde do local estima que cerca de mais de duas mil pessoas teriam migrado para o município o que acarretaria pressão sobre os serviços de saúde do local, essa observação é comungada, também, pelo secretário de Educação.

Além disso, essa corrida para a região do entorno fez com as cidades do Estado de Goiás e Minas Gerais próximas ao Distrito Federal fossem ocupadas. Esses desequilíbrios econômicos e sociais da região do entorno do Distrito Federal motivaram o Governo Federal a criar, através de Lei complementar n0 94, 19 de fevereiro de 1998, regulamentada por decreto no 2.710, de 04 de agosto de 1999, alterado pelo Decreto n0 3.445, de 04 de maio de 2000, a Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e entorno (Ride). A Ride vinculada ao Ministério da Integração Nacional e tem como propósito desenvolver ações integradas entre União, Distrito Federal, Estados e municípios que integram a região para implantar soluções imediatas e em médio prazo para os problemas existentes na região.

Sobre a questão fundiária na região do entorno do Distrito Federal estudos realizados por (Aguiar et al., 1994) mostraram que principalmente os municípios de Cristalina e Padre Bernardo em Goiás, que têm uma agricultura centrada na monocultura, têm causado sérios danos ao meio ambiente pelo uso excessivo de agrotóxico, pelo manejo inadequado e pela utilização de tecnologias poupadoras de mão de obra, forçando o deslocamento da população rural para as áreas urbanas do entorno. Paralelo a essa situação, segundo os mesmos autores, é cada vez mais frequente os sítios de finais de semana no entorno, substituindo áreas de agricultura de subsistência, consideradas essenciais para a região por manter um equilíbrio mais compatível com o meio ambiente, além de contribuir para que parte da população rural permaneça no campo. Assim, essa transformação vem modificando as relações de produção existentes, os antigos pequenos produtores transformando-se em trabalhadores que as vezes são absorvidos no local pelo mercado de trabalho rural ou urbano, forçando-os a uma mudança para a periferia das cidades satélites.

Além da questão fundiária, o Distrito Federal passou grande parte dos anos 90, com taxas muito elevadas de desemprego, tendo como destaque o ano de 1998, em que a taxa de desemprego foi de 19,50% (Oliveira, 2007).

Esses elementos associados ao processo de redemocratização do país possibilitaram um cenário político social favorável à reforma agrária. E, a partir dos anos de 1970, com mediadores ligados principalmente à igreja católica e posteriormente com o movimento sindical nos anos 1980, a bandeira por reforma agrária passou a ganhar força e culminou com a ocupação de áreas improdutivas nos estados de Goiás e Minas Gerais, próximas ao entorno do Distrito Federal.

No final da década de 1980, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terras (MST), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e outros movimentos sociais fizeram com que a prática de ocupações de áreas urbanas no Distrito Federal fosse estendida também para áreas rurais das cidades do entorno, caso do município de Padre Bernardo. Desta forma, a concentração de terras e a proximidade com o Distrito Federal foram elementos que contribuíram para que a disputa por terras e sua ocupação acontecessem neste município.

O marco da ocupação de terras no município de Padre Bernardo foi o ano de 1998, período no qual o MST vinha trabalhando no levantamento das propriedades consideradas improdutivas no município, assim, o MST procurava agir como mediador no processo de ocupações. Em seu levantamento, os militantes do movimento descobriram cinco fazendas que foram avaliadas como improdutivas pelo MST, a partir dessa avaliação o passo seguinte foi organizar as famílias que iriam ocupar tais fazendas. Para isso, foi realizada uma intensa mobilização nas cidades satélites de Brasília convocando as pessoas a participar das ocupações no município.

Esse tipo de estratégia de mobilização por parte do MST na região do entorno do Distrito Federal também foi observado por (Sigaud, 2005) em acampamentos na Zona da Mata Sul do Estado de Pernambuco. Lá, muitos dos trabalhadores que foram engrossar a luta nos acampamentos o fizeram por meio de convites feitos por militantes do MST e sindicalistas nas periferias das cidades da Zona da Mata pernambucana.

Assim, a quase totalidade dos atores que participaram das ocupações no município tinha morado anteriormente nas cidades satélites do Distrito Federal como Samambaia, Céu Azul, Braslândia, Recanto das Emas, Ceilândia, entre outras, e partiram para ocupações de terras no município de Padre Bernardo.

É importante ressaltar que os assentados que participaram do processo de ocupação de terras na região inicialmente o fizeram pela possibilidade de conseguir algo como ter uma terra, trabalho, créditos, moradia e não por um engajamento político, estimulado pelo movimento, nos moldes ideológicos do MST, conforme é observado em outros assentamentos no país. Para muitos, o MST era um movimento que conheciam, até então, apenas pela imprensa televisiva, especialmente, através do massacre de trabalhadores rurais no município de Eldorado dos Carajás no Estado do Pará, em 1996.

Rapaz, eu tinha um medo daquilo [das ocupações]. Medo demais, porque a gente via as brigas, principalmente naquele lugar que teve as mortes, no Pará, em Eldorado, onde matou um ‘mucado’ de gente lá. Então aquilo ali me deixou com medo (Sr. G, 2001).
No movimento eu ouvi falar, naquela ocasião, que teve aquela briga lá no Pará, onde mataram o Chico Mendes, era negócio dos sem-terras. E eu ficava pensando, será que eu vou para os sem-terras, será que vai acontecer comigo desse jeito também? (Sr. D, 2001).

Sobre a visão dos movimentos sociais é importante destacar que neste caso os mediadores desempenham um papel importante para o grupo, pois como destaca (Novaes, 1997), o mediador pode contribuir incorporando novos elementos ao grupo, além de ser um canal apropriado entre o grupo e o mundo externo, trazendo, por exemplo: a luz à possibilidade de reconhecimento político do grupo, a contribuição na organização do grupo, dentre outros. Seguindo esse raciocínio podemos destacar que os mediadores têm um papel importante em todo o processo de organização do movimento, antes e depois do assentamento.

Nesse sentido, a decisão de fazer parte das ocupações de terras na região estudada impõe aos indivíduos a necessidade de mudar o modo de ver os mundos externos e internos, assim surgem novos valores que vão orientá-los a se organizar e a se resocializar nesse novo ambiente, o mediador contribui para essas mudanças uma vez que estes favorecem a incorporação de novos valores ao grupo mediado.

É importante ressaltar que no processo de mediação na luta pela terra e na constituição de um assentamento rural existe uma diversidade de atores envolvidos tais como: Movimentos Sociais (MST), Estado, sindicatos, associações, instituições religiosas, organizações não- governamentais, universidades, etc. que apresentam formas e propostas distintas de atuação, operando um complexo jogo o que pode levar a um campo de disputa entre tais mediadores.

No caso da região pesquisada apesar da importância que o MST assumiu como mediador no início do processo de ocupação da área, as divergências entre o movimento e os acampados provocaram uma crise que levou o rompimento dos acampados com o MST, antes mesmo da consolidação dos assentamentos na região.

Já sobre a decisão de ir para o acampamento, as famílias que migraram para a área consultaram e conversaram com os seus parentes antes de tomarem as decisões. Mesmo sabendo que alguns seriam contrários a essa decisão, eles resolveram partir por acreditar “no sonho da terra”, e muitos foram acompanhados de vizinhos ou parentes que já estavam no movimento há mais tempo. Essa consulta segundo os entrevistados estava associada à necessidade de terem um suporte dos parentes se fosse preciso.

Nesse sentido, (Carvalho, 1999) aponta que as pessoas, que migram para áreas de ocupações de terras, saem de seu local de origem em grupo ou em famílias, e o fazem, frequentemente, com algum respaldo ou apoio logístico de amigos, vizinhos ou parentes que continuaram em seus locais de origem.

Nesse contexto, pode-se considerar a reforma agrária como uma estratégia de mudança para esses atores sociais, podendo representar uma saída não só para minimizar as penúrias do cotidiano, mas também para buscar um lugar social que se possa driblar a exclusão. Portanto, os assentamentos rurais podem se tornar o lugar, o território, o espaço onde poderão ancorar seus valores culturais e estabelecer sua reprodução social. Além disso, os assentamentos podem ser uma porta para alcançar outras possibilidades.

Outra característica desses atores está atrelada ao trabalhador sem-terra que pode ser caracterizado como um “nômade geográfico e social” pela sua mobilidade social e pelas suas estratégias de sobrevivência. Além disso, os assentamentos são formados por uma heterogeneidade de pessoas como crianças, jovens, velhos, homens, mulheres, brancos, negros, mulatos e mestiços, católicos, protestantes, espíritas, umbandistas e diversas outras crenças, pessoas originárias de diversas regiões do país, provenientes da zona rural e urbana, de diversas escolaridades, profissões e diversos valores morais, políticos e culturais, e diversas habilidades com uma complexidade de contexto social. Ali milhares de indivíduos estão vivenciando novas formas de interação social. (Carvalho, 1999).

Para (Silva, 2003), a construção do novo espaço social incorpora traços do mundo tradicional. Isso não significa simplesmente retornar ao passado, mas recriam-se valores do passado e do presente formando uma simbiose. Assim, a vida cotidiana é formada por laços de solidariedade com referência na tradição, no parentesco e na ajuda mútua.

Neste caso, é possível citar as redes de relações construídas nesses espaços, um exemplo, é o auxílio que as famílias já assentadas dão aos parentes que chegam de seus locais de origem em busca de terra. Essa relação é denominada por alguns como ‘encostado’ que consiste na espera desse novo migrante na casa de um parente até conseguir também, um pedaço de terra ou então desistirem e voltarem para seu local de origem, como pode ser observado na fala logo abaixo:

Eu trouxe do Maranhão o meu pai e a minha irmã aqui para Goiás para ver se eles conseguem ganhar terras, também, porque lá as coisas eram muito difíceis para eles (Sr. R, 2005).

Esta situação é semelhante à que (Lima Jr., 1988) observou em assentamentos do Paraná, em que o “encostado” fica no lote de um parente numa condição provisória, até arrumar um lugar ou uma terra para ficar. Neste caso, a pessoa que oferece o “encosto” contribui com apoio logístico:

Camponeses encostados, termo que designa o filho, irmão, casado com a irmã ou genro do dono (proprietário ou posseiro) do lote em que fixa a residência. Uma das suas características é sua provisoriedade e exclusão. Quem se encosta não pode permanecer encostado indefinitivamente. Caso se encoste no pai, não deverá herdar aquele lote (Idem, 1988, p.49).

A relação de parentesco morando no assentamento vai refletir nos níveis de rendimento que os assentados passam a ter. Isso ocorre porque o trabalho é centrado no número de membros que as famílias possuem, fazendo com que as atividades sejam planejadas de acordo com a força de trabalho do grupo familiar.

  1. A vida no assentamento

Após a conquista da terra no início desse século, os assentados depararam-se com um novo desafio, que vai desde o fortalecimento de sua organização até a obtenção de infraestrutura produtiva e social. Esses desafios ficaram evidenciados quando se realizou a eleição de prioridades no assentamento Vereda I, na qual os assentados definiram as demandas para o novo espaço em que vivem. O Gráfico 2 apresenta o resultado da eleição de prioridades com as principais demandas nessa fase inicial de construção do assentamento.

Gráfico 2: Eleição de Prioridades da Área Social
Fonte: Oliveira, (2007).

Como pode ser observado na figura acima, a água é um dos principais desafios que as famílias encontram, não só para o consumo, como também para a produção, pois a falta desta inviabiliza o cultivo de muitas culturas. Outro desafio enfrentado pelos assentados, nos primeiros anos foi à falta de moradia adequada, que para muitos, além deste ser considerada um espaço de proteção é também um espaço simbólico, que faz parte da construção da identidade das pessoas, como pode ser observado na fala logo abaixo. “É o lugar onde a gente recebe as visitas e a onde a gente descansa, e as condições que a nossa casa está é muito difícil pra gente, porque uma pessoa sem casa não é ninguém”. (Sra. J, 2001).

Para (Lemos, 1989), a moradia tem um papel muito importante que é a chamada função abrigo, sendo esta entendida como um invólucro seletivo e corretivo das manifestações climáticas. Enquanto oferece as mais variadas possibilidades de proteção, é também palco permanente das atividades relacionadas à cultura de seus moradores.

As moradias dos assentados nos primeiros anos dos assentamentos eram habitações temporárias, em que utilizaram recursos locais disponíveis em suas construções. Estas se diferem entre si de acordo com os materiais disponíveis e com o saber que cada assentado adquiriu ao longo de sua vida. As mais comuns são aquelas com chão de terra batida, cobertas com palha ou telhas de amianto e com ausência de banheiros, o que afeta as condições de saúde destas famílias.

Em 2003 com a obtenção dos créditos destinados a construção das casas os assentados, construíram casas de alvenaria com tijolos furados (25x20x10 cm), com telhados de duas águas cobertos por telhas de amianto, as portas e as janelas são de metalon sem pintura e o chão de cimento grosso. Em sua maioria, as casas não foram embolsadas por causa do valor baixo dos recursos. Na construção das casas foi utilizado também material do lugar, tais, como madeira e pedras. De uma maneira geral, as casas foram construídas próximas à entrada das chácaras e consequentemente mais perto das estradas de acessos às casas, o que facilita a locomoção de seus moradores. Em 2006 com a implantação de rede elétrica os assentados puderam ter mais conforto.

Imagen 1: Morada típica assentamentos da regiäo.
Fonte: imagenes tiradas pelo autor.
Imagen 2: Morada típica assentamentos da regiäo.
Fonte: imagenes tiradas pelo autor.

Para (Marcelin, 1999), ao construir uma casa os moradores consideram uma série de fatores, como onde construir, qual o material a ser utilizado, com quem construir; isso pode ser uma atividade que reúna a comunidade.

Mas, apesar de todas as dificuldades que enfrentam no assentamento segundo eles, os desafios que são colocados nesta fase de suas vidas valem o esforço, pois, para muitos, é a primeira vez, de fato, que são proprietários de um pedaço de terra.

Sonhos e esperanças são projetados a cada dia, na expectativa de construírem não só um espaço para produzirem, mas também um local em que possam deixar suas raízes para as gerações futuras. Neste sentido, a fala de dois entrevistados ilustra esse sonho.

A vontade de construir um espaço para viver, deixar de herança para os filhos e nele produzir é algo marcante entre os entrevistados. Para eles, a chance de ter uma terra sinaliza a realização de um sonho e isto motiva cada assentado a continuar a sonhar “com nossas criaçãozinhas”, o que na cidade seria mais difícil, devido principalmente, às condições financeiras em que viviam.

Esses sonhos foram projetados nas entrevistas e também evidenciados na técnica da construção, na qual estes construíram maquetes que simbolizavam o que queriam para o assentamento no futuro. Através desta técnica, foi possível perceber as experiências dos assentados, pois os mesmos na construção das maquetes projetaram seus sonhos a partir de conhecimentos adquiridos ao longo da vida e das expectativas futuras.

Além disso, nessas projeções os assentados refletiram sobre a forma como as relações de trabalho seriam construídas no assentamento essa situação é observada onde a prioridade é plantar para o consumo familiar; em média são plantados cerca de dois hectares por família, podendo variar de acordo com o tamanho da família e as condições financeiras destas, sendo esta a situação mais preponderante. E, para o plantio todos os membros da família são mobilizados. Neste as mulheres nos assentamentos desenvolvem não só atividades restritas ao lar e ao cuidado com as criações domésticas, mas, sempre que possível, “ajudam” os maridos nas atividades da roça, como fica representado na fala logo abaixo:

Eu trabalho sozinho, a minha esposa quando pode, ajuda também. Na foice ela não aguenta não, mas na enxada ela é melhor do que eu. Ela trabalha na enxada o dia todinho. Se é pra carpir ou colher, ela não me larga de jeito nenhum. Ela não é muito boa com a foice não, mas com a enxada ela é melhor do que eu (Sr. B, 2005).

Na rotina diária das mulheres que moram nos assentamentos é possível observar que no período de chuvas se exige um tempo maior para a lavoura, isso porque segundo elas o período do verão é muito quente e não tem muito que fazer, época que vão buscar trabalho na cidade. Ainda sobre o trabalho alguns assentados relataram que têm o hábito de “trocar dias” com seus vizinhos ou amigos, reforçando laços de vizinhanças, que para alguns são essenciais no desenvolvimento do trabalho, como pode ser visto no depoimento do assentado, logo abaixo:

A gente costuma chamar alguns colegas. Eles trabalham um dia ou dois dias para mim e depois eu trabalho para eles. Agora é época de fazer isso porque está no período de fazer roça. Então eles me ajudam e eu ajudo eles, porque dinheiro a gente não tem mesmo, então tem que ser é troca de dias (...) Essa troca de dia é mais na época da roça. Eu vou ajudar o compadre Toinzinho a fazer cerca, o Roberto a fazer cerca. Eu troco dia mais com os vizinhos mais próximo mesmo e desse jeito vamos levando (Sr. F, 2006).

Essa relação de vizinhança, segundo (Lima Jr., 1988), é uma relação social considerada essencial para os camponeses, porque os vizinhos participam de diversas atividades como troca de bens e troca de dias, que auxiliam não só na realização dos trabalhos, mas também nas diversas formas de sociabilidade. Em alguns casos, para a realização da “troca de dias”, o critério adotado é o desempenho do parceiro nas atividades relacionadas com o trabalho a ser desenvolvido.

Também, foram formados nos assentamentos grupos de afinidades constituídos por pessoas que compartilham das mesmas opiniões e para se produzir ou trabalhar em parceria, através de mutirão ou através de alguma experiência coletiva.

(Bauman, 2003) chama atenção para o tipo de contrato que se estabelece entre esse tipo de comunidade, centrado na ideia de ajuda mútua para, quando precisar, obter a ajuda necessária. Nos assentamentos da região esse tipo de contrato se deu a partir das experiências com os grupos de afinidades, formados por membros dos assentamentos que têm objetivos em comuns.

Bom depois do curso que a gente está fazendo na escola agrícola, a gente veio com a ideia de grupo de afinidades, (...) esses grupos são formados por pessoas aqui do assentamento que trabalham na forma de mutirão e na base da troca de dias, ou que tem plantado ou criado alguma coisa em comum. Assim todo mundo acaba ajudando todo mundo. Ma não é todo mundo que participa não, só aquele que têm uma visão mais coletivista que aderiram a ideia (Sra. Ar. Vereda I, 2004).

Sobre os cultivos nas chácaras são basicamente aqueles relacionados com o plantio de culturas voltadas para segurança alimentar do grupo, que proporcionam sustento quase que imediato à família. As principais culturas desbravadoras são milho, feijão, mandioca e abóbora, que são cultivadas nas terras melhores. Esses cultivos estão associados ao calendário agrícola que é definido por eles em dois grandes períodos. O primeiro é marcado por uma estação de chuvas e é quando estão contidos os meses de maior intensidade de trabalho. Geralmente esse período está relacionado às atividades que antecedem ao plantio, que normalmente iniciam-se com as primeiras chuvas, conhecidas na região como a chuva do caju. Essa chuva serve para fortificar a florada do caju e amacia a terra para o plantio; normalmente a chuva começa no início de setembro. Assim, o calendário agrícola da região estaria relacionado a essa chuva.

Nas entrevistas realizadas com as mulheres, foi possível perceber que nos períodos de chuva, quando se tem maior disponibilidade de água para produzir, o trabalho das mulheres é mais intenso na roça. Além disso, é o período ideal para se realizarem mais tarefas. É importante ressaltar que em algumas chácaras, onde a mulher é a proprietária, todo o trabalho é realizado por ela com ajuda de filhos ou até mesmo através da utilização de algum mecanismo de ajuda mútua.

Antes dessas chuvas os assentados não preparam a terra para plantar. Nessa etapa, que se inicia no último trimestre do ano, acontece o preparo do solo, aração, gradagem e o plantio do arroz, feijão e do milho. Em alguns casos só ocorre a aração porque o dinheiro não possibilita realizar a gradagem.

No primeiro trimestre do ano acontecem os tratos culturais capinas e adubação. Entre março e maio são realizadas a colheita e a limpeza do arroz e feijão. Em maio e junho, dobram o milho e preparam- se para a colheita desse no mês seguinte. Nos meses de junho e julho, colhem o milho manualmente, às vezes em algumas famílias por meio de mutirão característico pela troca de dias.

De julho a final de setembro, realizam-se outras atividades, como consertar uma cerca, tratar do gado, tirar leite (atividades do cotidiano), ou dos caprinos.

Esse segundo período é marcado por um clima seco e com escassez de chuvas. Aqui nesse período, em que o trabalho é menos intenso no assentamento, os assentados vão procurar trabalho nas cidades satélites de Brasília, deixando a família no assentamento, e em alguns casos, é a mulher que acaba se assalariando na cidade, como empregada doméstica ou diarista.

Em final de setembro, recomeça todo o calendário agrícola. É possível concluir que o planejamento das atividades de trabalho na região está diretamente relacionado com o ciclo agrícola, que por sua vez está relacionado com o ciclo de chuvas da região. Entender essa relação com as chuvas é importante para perceber que no período de estiagem com poucas atividades na roça muitos assentados vão para casas de parentes na cidade em busca de trabalho. Assim, a cidade exerce uma influência na vida deles, sobretudo no que diz respeito à relação com os familiares e como um local que possibilita conseguir trabalho tanto para homens quanto para mulheres - um local que garantiria condições para que os assentados permaneçam vivendo nos assentamentos da região.

Nesse sentido, a família que está na cidade passa a desenvolver um papel importante, pois, como disseram, sem o aporte da família que está no Distrito Federal, à vida no assentamento seria quase impossível, pois é geralmente na casa desses parentes que os assentados tendem a ficar durante a semana. E, em muitos casos, são os parentes que estão na cidade que conseguem os chamados bicos ou trabalhos temporários.

Nessa migração pendular, assentamento – cidade - assentamento, Essa relação com a cidade mostra que os assentamentos da região não estão isolados, eles fazem parte de uma complexa rede de relações sociais que os liga a outras esferas das sociedades. É importante ressaltar que apesar deles terem vindo de vários lugares isso não que dizer que eles chegaram ali atomizados. Vieram de vários lugares, mas a partir de relações familiares, políticas até mesmo de vizinhanças pré-constituídas, onde estes faziam parte destas unidades e ainda continuam fazendo parte.

Conclusões

Por meio deste trabalho, foi proposto analisar a migração de assentados na região Pé de Serra, município de Padre Bernardo, Goiás, região do Entorno do DF. O contato realizado inicialmente com os assentados em trabalho de campo, trouxe uma questão norteadora para a realização deste trabalho. Quais as razões que levaram esses trabalhadores rurais, de origem camponesa, a migrarem do campo para as cidades e depois das cidades para áreas de assentamentos rurais?

Além disso, foi possível perceber que é comum a decisão de migrar estar relacionada com a possibilidade de mudanças quanto às condições de vida em diferentes fases de suas vidas. No momento em que decidiram migrar do campo para a cidade, tinham a esperança de melhorar de vida, ter uma vida mais digna, procuravam sair das condições de precariedade em que viviam, seguindo rotas de parentes que os antecederam, mostrando assim, uma relação entre migração e parentesco.

Na cidade, o sonho não foi possível de se concretizar, sobretudo pelas mudanças que ocorreram no mercado de trabalho nas últimas décadas, em relação, principalmente, à especialização e a qualificação da mão-de-obra. Isso fez com que os migrantes buscassem, no assentamento, um local para viver e trabalhar, onde o seu saber camponês e a sua experiência na cidade poderiam ser colocados em prática. Desta forma o assentamento surgiu, sobretudo, como um campo de possibilidade que permitiu vários migrantes, que não conseguiam re- colocação no mercado de trabalho da cidade, de trabalhar. Isso é possível de observar no depoimento de um assentado.

Quando eu chegava para procurar emprego, iam logo me pedindo os documentos, via a minha idade [62 anos] e logo falava que não tinha vaga não. Rodei por todo canto e a única coisa foi isso aqui [assentamento]. Vim parar nos sem terras, aqui pelo menos planto para comer (Assentado do Vereda I, 2004).

Esse constante deslocamento, ou seja, estar um dia em um determinado lugar e depois em outro, pode ser considerado como uma das táticas encontradas por esses trabalhadores para saírem da pobreza, encontrarem novas condições de vida. O assentamento rural surge como uma perspectiva nova para esses migrantes. Em recentes pesquisas realizadas em assentamentos rurais no Brasil por (Medeiros & Leite, 2004), os mesmos apontaram que um aspecto subjetivo, apresentado pelos assentados, foi da nova condição que o acesso a terra traz a essas pessoas, ou seja, essa nova condição faz com que o sujeito se sinta liberto, dono dos seus próprios passos, traz uma sensação nítida de melhora em relação ao passado.

Nesse sentido, o assentamento rural pode ser considerado um espaço em que esses trabalhadores, migrantes ou não, possam conseguir uma relativa autonomia comparada com as várias fases de suas vidas. Esta autonomia está relacionada à ausência de um patrão e à administração de seu próprio tempo, fatores estes considerados importantes por eles. Para os assentados o assentamento torna-se um espaço de esperança, torna-se uma ‘encruzilhada social’ (Carvalho, 1999), devido à heterogeneidade de pessoas e valores que compartilham essa etapa de suas vidas. Novas formas de socialização serão incorporadas, novos saberes serão adquiridos, porém, muito do saber que estes trabalhadores acumularam em suas trajetórias, será reproduzido neste ambiente.

Essa heterogeneidade de pessoas vivendo no assentamento vai marcar também as diferentes formas de intervenção nos ecossistemas, formas de cultivar a terra, aproximação das pessoas em grupos de interesses comuns e diferentes formas de criação de pequenos espaços coletivos de vivência de novas práticas sociais.

Outro ponto a destacar que após a conquista da terra, os assentados deparam-se com um novo desafio que passa a ser construído coletivamente e também individualmente. Vai desde o fortalecimento da sua organização através de sua associação, do desafio de viverem num modelo de agrupamento diferente ao que estavam acostumados e de até mesmo da obtenção de infraestrutura necessária para a sobrevivência deles.

Nesse novo espaço diversos mecanismos são acionados. Vão desde o controle social através da fofoca ou da vergonha e passam pelas condições climáticas - como, por exemplo, o ano agrícola determinado principalmente pelo ciclo chuvoso, que se inicia no final de setembro com as chamadas chuvas do cajueiro, que determina o início do processo produtivo nos assentamentos.

Portanto, o assentamento rural pode ser visto, por um lado, como um local de reprodução dos valores comuns à origem e à trajetória dos migrantes e, por outro, como uma estratégia de superação dos problemas encontrados na cidade, tornando-se o lugar de sua reprodução social.

Além disso, os assentamentos são importantes para a geração de renda e emprego agrícola e não agrícola, para a contribuição e para a manutenção da população rural no campo, além de um fator dinamizador no comércio local dos municípios, onde estão inseridos tais assentamentos.

Assim, os assentamentos trazem consequências não somente para as vidas dos assentados, mas para todo o território onde estão inseridos. Nesse sentido, é importante destacar que a constituição dos assentamentos no município contribuiu para diversas mudanças na dinâmica da organização territorial, deste município. Entre, estas mudanças podemos citar as diversificações produtivas de áreas que eram destinadas a monocultura, a fragmentação das terras em pequenos lotes e reorganização do processo produtivo.

Seguindo essa linha de raciocínio (Medeiros & Leite, 2004) mencionam que essas modificações na estrutura fundiária, econômica, social e política têm refletido diretamente por um lado, na composição de renda dos trabalhadores assentados, e por outro, contribuindo para a diversificação da economia local, da geração de impostos, e para os rearranjos políticos locais e regionais. Desta maneira, os assentamentos têm se constituído como um loco privilegiado para observação de múltiplas experiências no mundo rural.

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  1. Partes dos dados deste artigo foram extraídos da Tese de doutorado do autor Intitulada Retratos de Assentamentos: Um estudo de caso em assentamentos rurais formados por migrantes na região do entorno do Distrito Federal. Defendida em 2007 no curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, do CPDA da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Orientada pela Professora DS. Eli de Fátima Napoleão de Lima. Financiada com uma bolsa de doutorado de demanda social pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
  2. Doutor em Ciências, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ).