Estudos introdutórios sobre a fragmentação política no islã medieval

Introductory studies about political fragmentation on Medieval Islam

Resumen

Este artículo contiene un análisis acerca de la fragmentación política del Islam medieval y sus implicaciones en la formulación de la Europa, como bien apuntó Daniel Levering Lewis. No obstante, es necesario también valerse de fuentes primarias, tales como Al Muqadimmah, de Abu Zaid Abd’ulRahman Ibn Khaldun (1332-1406), el Corán y la inédita obra del siglo XII O Leão e o Chacal Mergulhador para intentar comprender la concepción de organización govermental del Islam. Lo que se percibe, pues, es la importancia de analizar el fenómeno del Islam en Europa para esbozar un breve y introductorio estudio.

Summary

This paper bring to us an analysis about the political fragmentation on Medieval Islam and its implications in the Europe’s development, also as said Daniel Levering Lewis. However, it is also necessary to make use of primary sources, such as Al Muqadimmah, by Abu Zaid Abd’ulRahman Ibn Khaldun (1332-1406), the Quran and the newest work of 12th century The Lion and the Jackal Diver (Unknown) to try to understand the governmental organization of Islam. What is perceived, so, is the importance of analyzing the phenomenon of Islam in Europe for a brief and introductory study.

Palabras claves

Islam – Al Muqadimmah – O Leão e o Chacal Mergulhador

Keywords

Islam – Al Muqadimmah – O Leão e o Chacal Mergulhador

Introdução

Em 732, Carlos Martel estava impedindo a expansão islâmica em território europeu1. Na visão de Lewis (2010), é a partir de tal ocasião que as incursões muçulmanas irão progressivamente aumentar. O mesmo autor sustenta que “Las Navas de Tolosa [1212] foi a primeira guerra travada exclusivamente entre cristãos e muçulmanos” (LEWIS, 2010, p. 399). Com isso, nota-se que é a partir de visões antagônicas forjadas em um curso histórico – a representatividade do “outro” – que se forma a hostilidade para com o Islã e seus praticantes. Mas no que consiste o Islã? E o que aconteceu em sua história para que haja tamanho estranhamento?

Os Muçulmanos – “aqueles que se submetem voluntariamente à vontade de Deus” e praticantes do Islã - estão ligados por um fator comum: acreditam que Alá escolheu Maomé como o profeta inspirado por mensagens divinas, estas contidas no Livro Sagrado – o Alcorão. Para Mantran (1977), o Corão só fora compilado após a morte do Profeta, realizado por Abu Bakr e, sobretudo, no período do califa Uthman ibn Affan2. Uthman produz a versão final do texto sagrado, ordenando a queima das variadas versões. Hoje, o Corão é conhecido como “o Mushaf de Uthman”. (SAEED, 2008).

O Alcorão foi sendo legado aos poucos ao profeta Maomé. Ao longo de 21 anos (ARMSTRONG, 2001), o Corão foi transmitido através do anjo Gabriel, que era o intermediário entre o profeta e Deus. Em linhas gerais, o Islã prega, entre sua estrutura básica, a igualdade espiritual entre os homens. Assim, apoia-se em torno de cinco preceitos: (1) profissão de fé (Chahada), em que se recita a grandeza de Deus (“Não existe nenhum Deus para além de Alá e Maomé é o Seu profeta”), as cinco rezas diárias3 (Salat), o jejum no nono mês do calendário lunar – o Ramadã4. Além destes, há o zakat, este que é uma “taxa fixa da renda e do capital (em geral, 2,5%), que deve ser paga por todos os muçulmanos, todo ano, para ajudar os pobres” (ARMSTRONG, 2001, p. 270) e a peregrinação a Meca (Hajj)5.

Caracterizando o califa na obra de Ibn Khaldun

Na sua tentativa de sintetizar uma História Universal, Ibn Khaldun buscava compreender a sua sociedade com um olhar crítico: estar atento às mudanças que acontecem na natureza da mesma. Sua análise abrangeria todo um espaço social6; seus estudos também focaram nos califas, visto que “[...] à medida que a classe dominante se acostumasse com um estilo de vida luxuoso, a complacência tomava conta e esse grupo começava a perder o vigor” (ARMSTRONG, 2001, p. 155).

No período dos califas, a simbologia era comumente utilizada enquanto suporte para legitimação do poder; também era frequente a aproximação com a família de Maomé – mediante a genealogia (Hourani, 1995, p. 56). Na visão de Ibn Khaldun, é oferecida uma breve função designada a um califa:

“O Califa é, pois, na realidade, o lugar-tenente do legislador inspirado, encarregado de manter a religião e de se servir dela para o governo do mundo. Temos dito que esta dignidade não é, na realidade, senão uma tenência, uma substituição. O que dela se acha revestido, substitui o legislador inspirado, toma o seu lugar, sendo encarregado de manter a religião, e, por este meio, governar o mundo. Tal ofício é designado indiferentemente pelos termos ‘khilafat’ ou califado, tenência; ‘imamat’, imamato ou chefia. Dá-se a quem ocupa o cargo o título de Califa e o de Imane; foi intitulado também Sultão, nos últimos séculos, quando havia muitos califas contemporâneos. Muitas nações afastadas umas das outras, não achando ninguém com todas as qualidades requeridas para ser califa, viam-se obrigadas a conferir esta dignidade a qualquer um que tomasse conta do poder. Deu-se ao Califa o título de ‘Imane’ (o que está na frente, na dianteira), porque o compararam ao imane que dirige a oração pública, e cujos movimentos são imitados por todos os presentes. Daí provém o emprego do termo ‘Grande Imanato’ referido à qualidade de califa. Adotou-se primeiro o termo ‘califa’, porque este chefe substituiu o Profeta perante seu povo” (KHALDUN apud SENKO, 2009, p. 47).

Na sua obra prima, Al-Muqaddimah: uma introdução à História, Ibn Khaldun traz outros elementos que caracterizariam o califa. Em uma breve leitura, percebe-se a ênfase que o autor dá à qualidade de califa, visto que a humanidade não seria existente sem um regulamentador: “Portanto, os homens não poderiam existir sem um chefe que os impeça de atacar uns aos outros. Para conter essas agressões, precisa-se de um moderador”. (KHALDUN, 1987, p. 374). No entanto, enfatiza a necessidade de governar para a sua população, não em prol do soberano7. Para Araújo (2006), como o califa representava a divindade e administrava de acordo com a lei divina, a corrupção representaria uma falha na teologia e uma ideia de decadência. Assim, “o califa é [...] encarregado de manter a religião e servir dela para governar o mundo” (KHALDUN, 1987, p. 379). A afirmação do califa também é sustentada pelo Corão: “Ó fiéis, obedecei a Deus, ao Mensageiro e às autoridades dentre vós!” (ALCORÃO, 4:59).

Para poder guiar os súditos à verdade, são requeridas quatro qualidades de um califa: o saber, a probidade, a aptidão e a sanidade dos sentidos. O autor ainda salienta que era necessário pertencer à tribo dos Coraixitas, possuindo um vínculo com Maomé; no entanto, a decisão foi revogada em virtude das divergências existentes até hoje no Islã8. Além disso, para a proteção da asabiya, a “cólera [...] é digna quando tem por motivo o desejo de sustentar a causa de Deus”9, sendo condenável se utilizada para repreender os seus irmãos – constituintes da Ummah – em virtude de beneficiar um sujeito ou grupo minoritário. O Representante de Deus na terra era um “Legislador inspirado, encarregado de manter a fé e, por tal meio, governar o mundo” (KHALDUN, 1987, p. 380). Para exercer a virtude de um bom califa, é necessário, também, ser dotado de um equilíbrio entre os extremos, não se esquecendo da benevolência para com seus súditos. “Assim, pois, dentro das qualidades do homem, ambos extremos são igualmente censurados; somente o justo merece os elogios. Assim, a generosidade ocupa o meio termo entre a prodigalidade e a avidez. A bravura se coloca entre a temeridade e a covardia” (KHALDUN, 1987, p. 377). Portanto, “o soberano se esforça constantemente por observar os preceitos e a prática da religião, procurando seguir o caminho da verdade” (KHALDUN, 1987, p. 405).

O leão e o chacal mergulhador e a moralização do “rei”

Além de ser um tratado político-filosófico, a obra O Leão e o Chacal Mergulhador10. lega preciosas informações acerca da condição do califado, justamente por ser composta entre os séculos XI e XII em Bagdá, “contemporâneo das Cruzadas e do processo de esfacelamento do poder califal abássida” (JAROUCHE, 2009, p. 195). Vale ressaltar que a produção só foi possibilitada pela descoberta de um manuscrito datado do século XVIII, localizado na Índia, na cidade de Patna, sob o número 1825 (JAROUCHE, 2009, p. 195). Com isso, a edição que aqui trabalhamos é inédita, tendo em vista que a descoberta do documento indiano pôde preencher “lacunas existentes nos outros dois manuscritos, proporcionando, ademais, novas leituras e variantes de trechos obscuros”. (JAROUCHE, 2009, p. 195)

O resultado da tradução se dá no livro O Leão e o Chacal Mergulhador, que nos transmite uma gama de recomendações a serem seguidas pelos califas. Giordani (1997) atesta que o traço característico da literatura árabe medieval é a imaginação, voltada muito para o uso da analogia. Para a construção textual, a analogia “se tornou uma operação mental exercida pelos árabes de maneira inconsciente. [...] Todo objeto desconhecido torna-se, então, o termo in absentia de uma analogia, com o qual era preciso relacionar, a qualquer preço, um termo in praesentia” (AL-JABRI, 1997, p.50). Em suma – o que se altera são os conselhos dirigidos ao Rei. O encadeamento de histórias, articulando os exemplos a serem seguidos, compõem o cerne da obra.

Como Deus é o onipresente e o sapientíssimo (ALCORÃO, 2:32), a inspiração dada a um rei deve ser concedida por Alá. Seguindo nessa mesma perspectiva, a imagem do Chacal – Mergulhador por se tratar de um espírito investigativo – recomenda um conselho que é perceptível em inúmeras passagens do Alcorão:

“[...] Eu te recomendo uma virtude: pensa bem de Deus, pois quem pensa de Deus, e a Ele se confia, preserva-se de aspectos nos quais seu pensamento não se encontra e sua mente não se acerta. Fica sabendo que Deus poderoso e excelso não subtrai algum aspecto a animal algum sem o compensar com outro” (ANÔNIMO, 2009, p. 141).

E ainda prossegue: “[...] atribui a Deus o que for superior à tua força e capacidade, pois quem dotou cada animal daquilo que a necessidade impunha provê-los-á daquilo que lhes superar as forças” (ANÔNIMO, 2009, p. 141). Ser justo, pois, é uma característica intrínseca à qualidade de rei. Estando atento às situações11 e sendo conduzido pela autoridade divina, o Rei se livraria das sutilezas, guiando seu povo à verdade, pois:

“Deus, excelso seja seu nome, fez do soberano sustentáculo de seu mundo e ordenamento para seus súditos, por meio dele afastando o ignorante do inteligente, separando o verdadeiro do falso, defendendo o fraco do forte, reavivando a tradição e executando o preceito da lei, pois a prosperidade do soberano é a prosperidade da situação geral, e a sua corrupção é a corrupção da ordem” (ANÔNIMO, 2009, p. 58).

O Mergulhador, instruindo as futuras ações do Rei, alerta também que a manutenção de um reino se dá com a justiça e boa conduta, mantendo a integridade e a sapiência12: “[...] sobre teu caráter, que não te açodas na recompensa nem na punição. Isso conserva melhor o temor de quem teme e a esperança de quem espera” (ANÔNIMO, 2009, p. 180). Ora, também podemos recorrer à autoridade de Al Muqaddimah, defendendo a benevolência como qualidade de um califa13. Ilustrando de inúmeras maneiras, três elementos são importantes para a caracterização de um califa: “Fica sabendo que a dignidade do rei está na justiça [...] e a elevação do rei está no saber [...] e que o rei se rebaixa com diversão e zombaria”. (ANÔNIMO, 2009, p. 184). Também é necessário ao rei manter-se em equilíbrio e estar em plena sanidade para obter o maior benefício dos conselhos, escolhendo quais decisões a serem tomadas. A adulação pode “cegar” um rei, visto que poderá corromper a ação do soberano: “Quem serve ao soberano deve evitar exageros e misturar um pouco de lisonja ao amargor do conselho” (ANÔNIMO, 2009, p. 135).

Por um mundo muçulmano

Será no início do século VII até meados do século VIII, aproveitando o enfraquecimento do Império Bizantino, que o Islã conquista a Península Arábica e a região do Norte da África, apoderando-se, dentre outras, da importante cidade de Antioquia (WELLS, 2012). Percorrendo o Magreb e se fixando em território luso-hispânico, Hourani (1995) mostrará que, no século X, a expansão muçulmana atingiu o seu ápice. Aglomerando diversas etnias e diferenças religiosas, cria-se aquilo que o autor denomina de “um mundo muçulmano” (HOURANI, 1995, p. 61), visto que “a língua árabe difundiu-se junto com o Islã” (HOURANI, 1995, p. 66). Percebe-se um amplo contato entre as populações, aquilo que Lewis (2012, p. xxiv) chamará de “complexidades de coexistência”14. Isso só foi permitido em virtude da tolerância islâmica para com as outras religiões. O Alcorão ainda nos adverte sobre a tolerância: “Combatei aqueles que não creem em Deus e no Dia do Juízo Final, nem abstêm do que Deus e Seu Mensageiro proibiram, e nem professam a verdadeira religião daqueles que receberam o Livro, até que, submissos, paguem o Jizya” (ALCORÃO, 9:29, grifo nosso). Submissos à autoridade do Islã, as diversas populações judaicas e cristãs possuíam a liberdade de culto, desde que se limitassem a uma série de exigências, além de pagar a Jizya15. Essa variedade de condição religiosa, bem como diferenças naturais, gerarão conflitos em localidades em que o Islã e a autoridade central não possuem grande domínio. Para Hourani (1995, p. 74): “[...] dentro desse “mundo do Islã”, num determinado nível intermediário entre ele e as pequenas unidades coesivas da vida diária, havia identidades de um tipo que não criava, em geral, lealdades tão fortes e duradouras”. Mas o autor prossegue: “Havia, no entanto, certa consciência das características especiais de uma cidade e sua região circundante, que podia expressar-se em termos islâmicos”. (1995, p. 75).

Entre os séculos IX e XI, ocorre uma onda de fragmentação da unidade imperial, dividindo-o em uma série de regiões autônomas. No entanto, para Hourani (1995), ao invés da pulverização do Império enfraquecer sua autoridade, a ação ajudou a disseminar o Islã, além de que “[...] dentro dessa vasta esfera de interação, foi possível surgirem governos fortes, grandes cidades, comércio internacional e uma zona agrícola florescente, mantendo as condições para a existência uns dos outros” (HOURANI, 1995, p. 75). A isso, nota-se a formação de um Império, posteriormente dividindo-se, mas em que as dissidências ainda reconheciam a autoridade superior, como o Califado dos Abássidas: “Apesar de dividido em três califados, o mundo muçulmano nem por isso deixou de ser um mundo unido por dois fatores essenciais: a adesão a uma mesma religião e a utilização de uma mesma língua” (MANTRAN, 1977, p. 162).

Com a fragmentação do Império, remetemo-nos, pois, à região da Península Ibérica, na Al-Andalus. Para BISSIO (2008, p. 82), “[...] de todo o território de al-Andalus, só o reino de Granada – que correspondia a uma parte atual da Andaluzia, no sudeste da península Ibérica – resistiu até 1492, no fio da navalha, ao longo de 250 anos”. No período que os muçulmanos estiveram na região, houve um intenso e significativo contato entre as populações, produzindo um avanço tão esplendoroso que “a Ibéria Muçulmana de ‘Abd al Rahman estava pelo menos quatro séculos mais avançada do que a cristandade ocidental em 800 EC” (LEWIS, 2012, p. 303). Isso é atestado também pela crueldade e pelo fraco desenvolvimento da sociedade franca (LEWIS, 2012; MAALOUF, 1994). No entanto, o contato entre autoridades judaicas e árabes jamais foi proibido, visto que “essa combinação de muçulmanos e cristãos no campo de batalha não foi, de maneira alguma, a primeira (‘Abd al-Rahman III tinha emprestado a Sancho, o Gordo, um exército para recuperar o trono de Navarra), nem seria incomum no futuro” (LEWIS, 2012, p. 357-358) . E de fato, não seria: a situação em Al-Andalus, estava ameaçada em virtude das disputas entre os próprios muçulmanos, enfraquecendo o bem estruturado estado social e político estabelecido na península. No período entre 976 e 1009, instaurou-se um período de declínio dos omíadas da al-Andalus. Sucessivos ataques e desentendimentos entre os califas e puseram fim à dinastia omíada em al-Andalus em 1009, em virtude do poder estar nas mãos de Sanchuelo, “um exemplo de fusão entre fé e raça que havia muito vinha se desenrolando” (LEWIS, 2012, p. 361), além de não pertencer à dinastia omíada. Não havendo nenhuma ligação com a família do Profeta, as circunstâncias históricas puseram fim ao califado omíada de al-Andalus. No entanto, a tomada de poder por Muhammad II al-Mahdi reintroduz a dinastia omíada no poder (LEWIS, 2012). Como se percebe, a legitimidade dos califas está constantemente ameaçada por golpes.

Com sucessivos conflitos, “no dia 30 de novembro de 1031, o conselho do governo de Córdoba aboliu formalmente o califa omíada da Andaluzia”, introduzindo o regime das taifas16, pois “boa parte das propriedades foram reivindicadas por clãs árabes locais” (LEWIS, 2012, p.366). E é em um período próximo à queda do califado de Córdoba que ocorre um importante fato: a união de “um reino cristão unido, posicionado parar marchar contra a al-Andalus em colapso” (LEWIS, 2012, p. 371). Para Senko, “os reinos cristãos ao norte da Península, por sua vez, também foram sendo constituídos fundamentalmente por meio dessa sinalização do “outro”, ou seja, daquilo que é diferente” (SENKO, 2009, p 21). A união das taifas para marchar contra a al-Andalus em declínio é concebido hoje como Reconquista Cristã. No entanto, é errôneo alegar motivações religiosas, visto que a tomada de Toledo e posterior retração das fronteiras muçulmanas estavam muito mais motivadas a questões territoriais e financeiras. A batalha é concebida como “a mais célebre vitória da Espanha”17 e fundamental para compreender a fixação das fronteiras dos reinos ocidentais, pode ser observada como um momento específico da Reconquista Cristã, o qual determinará o fim da hegemonia almorávida e almôada. Não obstante, o sucesso da incurssão dependeriam estritamente da união dos povos cristãos. Para Alvira Cabrer:

“A batalha de Las Navas têm também o caráter de ‘procedimento de paz’, pois a decisão de enfrentar o conflito em um grande choque direto se toma pensando que dela se deriva a paz, uma paz vitoriosa, fruto da batalha que as crônicas identificam com a unidade dos hispano-cristãos frente ao inimigo comum muçulmano”(ALVIRA CABRER, 2000, p. 287).

A preocupação política em al Muqadimmah e o leão e o chacal mergulhador

Em Al-Muqadimmah, Ibn Khaldun cunhará a expressão asabiya, a qual podemos interpretar como o elemento que dá unidade a uma sociedade. Para Bissio (2008, p. 195), “a asabiya é responsável pela coesão “que faz os contingentes beduínos tão fortes e temíveis”. Com isso, é necessário um legislador para manter coeso o grupo, independente da extensão territorial do império, pois “nas comarcas remotas de cada império, encontram-se povos administrados por reis que obedecem as ordens do governo central” (KHALDUN, 1987, p. 375). Estando diante de um rei que opera de modo ineficaz a Ummah, o espírito da asabiya entrará em um processo de declínio. Não há, portanto, “nenhum outro destino possível senão a perda de poder, mais cedo ou mais tarde, para uma outra dinastia” (BISSIO, 2008, p. 197). O modo ineficaz também pode ser descrito pelas ações violentas do rei18, ocasionando a revolta da população para com seu líder e fragilizando a estabilidade, “semeando a desordem no Estado e deixando o reino exposto à invasão” (KHALDUN, 1987, p. 376). A tirania e o desejo de poder irá contra as virtudes de um líder e contra a doutrina religiosa, visto que “as leis do Criador impõem (ao soberano) a obrigação de induzir aos homens a observar o que elas prescrevem relativamente a seus interesses neste mundo e no outro”. Assim, percebe-se que a asabiya é um fato necessário para a vida humana, sendo impossível a existência da espécie se estiverem dispersos. Com uma ideia de declínio do espírito unitário em virtude da negligência e corrupção da alta cúpula do comando, Ibn Khaldun nos lega uma concepção de enfraquecimento e posterior sucessão de dinastias19. O Império, para Araújo (2006), por possuir relações interpessoais, geraria privilégios pessoais, ocasionando o colapso. No mais, o autor estima que uma estrutura coesa sustentada por dinastias durariam aproximadamente três gerações, até serem substituídas por novas estruturas e novas abasiyas. (BISSIO, 2008, p. 197).

A destreza para lidar com situações adversas, bem como tirar lições de seus equívocos, resultariam na manutenção do reino. Seria através da justiça e da boa conduta, “com extremo cuidado e informações que contribuam para a integridade do reino” (ANÔNIMO, 2009, p. 179), zelar-se-ia pela administração imperial. Além disso, tal como o espírito da abasiya de Ibn Khaldun, a corrupção e a ambição acarretariam no declínio da sociedade, pois “a corrupção dos homens e a ruína do país se dão com a anulação da promessa” (ANÔNIMO, 2009, p. 182). Analisando a ameaça e coerção, o autor anônimo remete-se a Alexandre, um administrador que era conhecido por sua benevolência e justiça. Graças às suas atitudes, “as pessoas anelavam que o poder passasse às suas mãos”. (ANÔNIMO, 2009, p. 183) Estando atento a um virtuoso exemplo, tal como Alexandre, o rei – apoderando-se de analogias para conduzir seu império e apontando semelhanças administrativas, seu legado poderia perdurar, tendo assim “[...] a memória perpetuada. [...] Ele não adota exclusivamente sua própria opinião, mas sim busca a dos dotados de opinião” (ANÔNIMO, 2009, p. 184).

Também atestado por Ibn Khaldun, o emprego do uso da força poderia se voltar contra o próprio rei: “A origem da desgraça [...] reside na total dependência da força. [...] A debilidade se manifesta na dependência da força e na falta de recurso à artimanha” (ANÔNIMO, 2009, p. 182) Os desejos mundanos debilitariam o estado social da ummah, em que a arrogância, o desperdício e o ressentimento poderiam facilmente desestabilizar a sociedade. Com uma alusão às paixões tirânicas, o Mergulhador adverte: “Ó alma! Que as ruínas do mundo não te empurrem para a aniquilação junto com elas, pois assim serias como a mosca, a quem o amor pelo mel a faz afogar-se nele” (ANÔNIMO, 2009, p. 188. Grifo nosso). O questionamento que o autor realiza, sobre “qual será tua situação quando a matéria tiver partido e o hábito, permanecido?” (ANÔNIMO, 2009, p. 185) pode ser facilmente respondido pelo gradual declínio imperial em virtude dos vícios adquiridos.

Considerações finais

A influência do mundo islâmico medieval muito nos auxiliou a desenvolver instrumentos culturais no Ocidente. Isso é perceptível a partir, por exemplo, nas obras de Avicena e sua importância na medicina. Como visto, o período medieval possui uma singular convivência entre ocidentais e islâmicos, produzindo esplendorosos resultados em um intenso hibridismo cultural. No entanto, a partir de visões antagônicas do “outro” no decorrer do fluxo histórico, gerou-se um estranhamento e um abismo entre “nós” e “eles”.

A partir das fontes selecionadas, além das obras posteriormente selecionadas, notamos uma precaução no que concerne à política interna, mas também externa do Islã, não se esquecendo da evidente preocupação com sua sociedade. Evidencia-se a enriquecedora análise da filosofia islâmica através da obra O Leão e o Chacal Mergulhador, além de contribuir com a criação de um modelo a ser seguido pelos califas. Através do estudo de Al Muqadimmah, possibilita-se “[...] ainda aproximarmos essencialmente do pensamento histórico de Ibn Khaldun, adentrarmos a sabedoria andalusi e é uma fonte medieval que deve ser valorizada como uma contra-voz de autoridade para o período tardo-medieval” (SENKO, 2009, p. 10). Por fim, cabe refletir sobre as influências islâmicas na constituição do medievo ocidental, entendendo-os como uma civilização inovadora, tendo como tributários os reinos cristãos, e até mesmo o próprio Ocidente.

Referencias


  1. Para alguns especialistas, a Batalha de Poitiers não representou uma grande vitória para os francos, visto que os muçulmanos a consideraram como uma mera incursão bélica.
  2. Os dois califas são considerados como integrantes do Rashidun, ou “Corretamente Guiados”. Iniciou-se em Abu Bakr e se estendeu até o controle de Abu Talib (Hourani, 1995, p. 44).
  3. ARMSTRONG (2001, p. 44) atestará que no período pré-islâmico as preces eram realizadas três vezes ao dia. “A oração é uma obrigação prescrita aos crentes, para ser cumprida em seu devido tempo” Alcorão 4:103.
  4. “O mês de Ramadan foi o mês em que foi revelado o Alcorão, orientação para a humanidade e vidência de orientação e discernimento”. Alcorão, 2:185.
  5. “O Hajj é a peregrinação principal, cujos rituais acontecem durante os primeiros dez dias do mês de Dulhijja.” Alcorão, 114:58.
  6. Para um melhor entendimento do que vem a ser “espaço social”, remetemo-nos a Henri Lefebvre: “O espaço social não é uma coisa no meio de outras, um produto qualquer no meio de outros produtos; ele envolve as coisas produzidas; ele abarca as suas relações na sua coexistência e sua simultaneidade. [...] Ele resulta de uma série e de um conjunto de operações e por isso não pode ser reduzido a um simples objeto [grifo nosso]”. (LEFEBVRE apud BISSIO, 2008, p. 26). Ibn Khaldun deseja descrever “tudo o que acontece ao gênero humano em seu estado social” (1987, p. 149), detalhando instituições, ações individuais, etc.
  7. “O imã perde a probidade se abusa de seus membros para cometer atos repreensíveis ou contrários à lei”. (KHALDUN, 1987, p. 384)
  8. Ibn Khaldun nos fornecerá um precioso conteúdo das divergências, mostrando que “os xiitas não estão de acordo entre si acerca dos indivíduos a quem o direito do imanato se transfere sucessivamente a partir da morte de Maomé.” (KHALDUN, 1987, p. 390-391). Para saber mais, ver LEWIS (1996) e HOURANI (1995)
  9. Na opinião de Karen Armstrong (2001a, 2001b), a única guerra que é permitida pelo Alcorão é a de autodefesa.
  10. Em 1978 foi publicada uma edição em inglês: The Lion and the Diver, por Radwan Assayyid. A edição foi baseada nos deteriorados (e agora sabemos que incompletos) manuscritos egípcios. (JAROUCHE, 2009, p. 194-195). Na tradução utilizada neste artigo há a inserção do termo “Chacal” devido ao fato de “evitar leituras equivocadas, uma vez que mares e rios mal se entreveem na obra” (MATOS, 2009, p. 10. Grifo nosso). Com isso, modifica-se o próprio conceito de mergulhador, que comentaremos a seguir.
  11. “O homem orientado pode evitar os deslizes assim que se avizinham retificando as coisas, delas extraindo utilidade e transformando em benefício, destarte, aquilo que se temia redundasse em prejuízo” (ANÔNIMO, 2009, p. 146). Além disso, o autor anônimo defende que “o homem é morto por sua própria artimanha. Obrai, pois, com reflexão naquilo que estais determinados a fazer” (ANÔNIMO, 2009, p. 108).
  12. “[...] Obtendo, nos livros, o máximo de benefícios contidos na busca de conselhos e conservando-se a salvo dos prejuízos que tal busca contém”. (ANÔNIMO, 2009, p. 184)
  13. “O bom senhorio equivale, portanto, à benevolência” (KHALDUN, 1987, p. 376).
  14. Para LEWIS (2012, ibid), a convivência entre muçulmanos e cristãos – embora não se denominassem de tal modo – gerou esplendorosos resultados, devido a confluência cultural entre os habitantes das regiões.
  15. “A Jizya é “o imposto per capita que os submissos à autoridade islâmica (os dhimmis) tinham que pagar em troca de proteção militar”. (ARMSTRONG, 2001, p. 268)
  16. Para VIGUERO-MOHLINS (1992), as Taifas são entidades políticas independentes que surgiram na Península. Em consequência das disputas internas no período de 1009 e 1031, houve o surgimento de vários núcleos regidos por inúmeras famílias, que conseguiram manter-se no poder por mais de uma geração.
  17. Valemo-nos da expressão feita por Cristóvão de Mesa, em seu poema épico Las Navas de Tolosa.
  18. É importante salientar que Ibn Khaldun utiliza os termos “rei”, “califa”, “imã” e “sultão”, este último concebido em virtude da existência de “vários califas contemporâneos” (KHALDUN, 1987, p. 380).
  19. BISSIO (2008) mostrará que os homens, após a ascensão imperial, começam a mudar de hábitos, tornando-se ambiciosos e gananciosos. Ibn Khaldun nos informa que na época de Omar (Umar ibn al-Khattab) “[...] ninguém pensava nem em um nome de um rei; acreditava-se que a monarquia era um foco de vaidade, uma instituição peculiar dos infiéis e dos inimigos da religião” (KHALDUN, 1987, p. 399).