Eu, nascido na púrpura. Porfirogenia bizantina no panorama cultural dos séculos X a XII: algumas considerações sobre Constantino VII Porfirogênito e Anna Comnena

I, born in purple. Byzantine porfirogenia in cultural panorama of centuries X to XII: some considerations about Constantine VII Porphyrogennetos and Anna Komnene

Resumen

Porfirogênito era a designação dada aos filhos dos imperadores bizantinos (basileus) nascidos na Sala Púrpura do Palácio imperial, quando seus pais estavam no poder imperial. Com este nosso trabalho, pretendemos esboçar algumas características culturais do império, que influenciaram os porfirogênitos nos séculos X a XII, mais especificamente com os exemplos de Constantino VII Porfirogênito (913-959) e da princesa bizantina Anna Comnena (1083-1153/4), ambos autores de obras historiográficas que têm influências de seus estudos e que são instrumentos de afirmação de suas dinastias. Podemos notar, portanto um processo histórico continuado de um florescimento cultural, que remonta tanto à dinastia macedônica quanto à dinastia Comnena.

Summary

Porphyrogenitos was the designation given to the sons of the bizantine emperors (basileus) that were born in the Imperial Palace’s Purple Room, when their fathers were holding the imperial scepter. With this work, we intend to drawn some cultural characteristics of the Empire, that influenced the Porphyrogenitos in the 10th and 12th century, more specifically with the examples of Constantinus VII Porphyrogenitos (913-959) and the Byzantine princess Anna Comnena (1083-1153/54), both authors of historiographical books that held influences of theirs studies and were instruments of dynastical affirmative. We can note a continued historical process of a cultural flourish, which is headed by the Macedonian dynasty of Constantinus VII Porphyrogenitos, and we can also get a perception of the Commennus epoch.

Palabras claves

Porfirogenia; Império Bizantino; Historiografia; Constantino VII Porfirogênito; Anna Comnena

Keywords

Porphyrogeny; Byzantine Empire; Historiography; Constantinus VII Porphyrogenitos; Anna Komnene

Esse trabalho foi pensado a partir de uma indagação feita no momento da análise das fontes bizantinas do século XI. Enquanto estudávamos a escrita da história durante o Império Bizantino no século XII, um material à parte ficou em espera de análise. Ficou reservado, porque causava um interesse peculiar: o intuito de discutir algumas questões, de pensar alguns aparatos simbólicos e sua importância com a própria postulação de funções dentro da estrutura política em Bizâncio. O material foi problematizado e, após um tempo de espera, tornou-se o que denominamos mais de um trabalho ensaístico do que uma reflexão aprofundada metodologicamente. Um interesse pessoal e a busca por respostas a esse interesse.

A dúvida que surgiu – e o encantamento pelo tema– foi proposta pela concepção de porfirogenia no Império Bizantino. Quais os significados, qual a importância, quais as características? O que queremos ressaltar neste trabalho são algumas considerações iniciais acerca do panorama cultural que envolvia o Império Bizantino a partir da figura dos porfirogênitos nos séculos X a XII, especificamente os casos de Constantino VII Porfirogênito e Anna Comnena, respectivamente.

Para isso, em uma concepção geral e parcial, analisamos a porfirogenia, que era a nominação dada àqueles filhos de imperadores (basileus) bizantinos que nasciam na Sala Púrpura do Palácio Imperial. Entretanto, era um privilégio restrito aos que nasciam enquanto seus pais estavam no comando do Império.

Constantino VII Porfirogênito pertenceu à dinastia dos macedônios, que ocupou o trono imperial entre o período de 867 a 1057. A historiografia ressalta essa época como um período de grande prosperidade, em quase todos os aspectos, desde o expansionista – resultado das pretensões imperiais, mais especificadamente das partes de Basílio I e Leão VI – até à organização interna, política, militar, econômica, muito forte – principalmente nos aspectos culturais e legais, com o exemplo do código de leis (Basilica) começado por Basílio e terminado por Leão1. Durante esse período da história bizantina, alguns historiadores, como por exemplo, Steven Runciman, consideram que “o império atingiu o zênite de sua glória medieval”2.

Constantino VII, filho legítimo da púrpura, por fim denominado Porfirogênito2, nasceu após o quarto casamento de Leão IV. Os autores consideram o seu reinado um dos momentos de ápice das produções culturais do império medieval bizantino. Ainda que sua ascensão ao posto de basileus e ao cetro imperial tenha sido rápida, algumas regências conjuntas ocorreram: entre 912-913, Alexandre, seu tio, passa a governar o império juntamente com Constantino VII Porfirogenito4; no ano posterior, com a morte de Alexandre, reina o Patriarca Nicolau, alcunhado de o “Místico”, permanecendo com o cargo por apenas um ano. De 914-919, junto com Constantino, encontramos a corregência do poder com sua mãe, Zoé, que, não obtendo vitórias contra as investidas búlgaras, cai.

Segue-se, pois, dividindo o cetro com o Porfirogênito, Romano Lecapeno, durante o período de 919-944. Durante sua administração – que por sinal se mostra eficaz5– Constantino é tutorado por Lecapeno, que pretende fundar sua própria dinastia. Para alcançar seus objetivos políticos, Lecapeno faz casar Constantino VII Porfirogenito com sua filha e coroa seus três filhos para darem sucessão à sua administração. No entanto, os três, em menos de um ano, devolvem o cetro a Constantino VII, que, a partir de 944, começa a administrar o império sozinho, governando até 959. Isso demonstra que as manobras políticas de Lecapeno, ao contrário de suas pretensões de controle do Estado, acabaram por servirem como potencializador do próprio poder de Constantino Porfirogênito.

Durante a administração de Constantino, encontramos dados passíveis de análise, os quais Speros Vryonis caracterizou como um florescimento literário e artístico6. E Constantino VII Porfirogênito contribuiu de forma decisiva para que esse florescimento se desse no mundo bizantino. Isso, claro, provinha de seus estudos, que o elevaram a uma condição erudita privilegiada para a época. Mario Curtis salienta algumas das características da educação de Constantino VII Porfirogênito:

O reinado de Constantino Porfirogênito caracteriza-se por empreendimentos culturais, como v. g. a reorganização da Universidade Imperial com o recrutamento de professores entre os melhores intelectuais do império. O próprio imperador, que vivera tantos anos uma vida solitária, (…) adquirira vasta erudição, conseguindo abranger toda a ciência bizantina da época (…)7.

E José Marín Riveros mostra que, enquanto Romano Lecapeno retinha em sua mão o cetro imperial, Constantino VII Porfirogênito aproveitara para se dedicar àquilo que lhe interessava: as letras...

Constantino não deve sua fama a seu gênio político nem a uma carreira militar coroada de vitórias; governante medíocre, passou a maior parte de sua vida no palácio – enquanto outros, especialmente Romano Lecapeno, faziam o cargo da condução do Império – dedicando seu tempo e energias a seu maior interesse: as letras8.

Ainda que trazendo um forte juízo sobre o governo de Constantino, com relação às atividades governamentais do Porfirogênito, Marín faz ressaltar um interesse enorme do Imperador pelos estudos, o que se prova com a quantidade de textos que ele mesmo ou escreveu ou organizou a escrita. Podemos considerar a obra Theophanes Continuatos um empreendimento de Constantino VII. Esta era, como o próprio nome diz, uma continuação da crônica de Teófanes9, do século anterior a Constantino VII. Dos seis livros que se tem notícia do Continuatus, pode-se auferir que os cinco primeiros foram escritos sob a supervisão do Porfirogênito, segundo Juan Signes Condoñer10. De maneira geral, o conjunto todo dos livros tratava da história e das características dos imperadores que exerceram a função imperial entre os século IX e X, quando da fundação da Dinastia Macedônica por seu avô, Basílio I11.

O papel de Constantino VII Porfirogênito na escrita ou compilação deste conjunto de textos figura não de modo como conhecemos a escrita nos dias de hoje, mas sim como um ordenador dos escritos, compilando o material que foi utilizado na montagem dos textos e trabalhando na ordenação do texto depois de pronto para que a compreensão figurasse de maneira lógica. Signes Condoñer nos mostra que o conjunto de proêmios do Continuatus (que provavelmente foram escritos a próprio punho por Constantino VII Porfirogênito) “indica claramente que o papel de Constantino foi ativo, enquanto que o dos escribas foi mecânico, ‘manual’”12. Ressalta-se que ativo, neste momento para esta análise, é compreendido como a agência de Constantino quanto à proposta de compilação. Assim, Signes Condoñer considera que devemos entender a figura de Constantino VII Porfirogênito como autor de todo o compêndio, recordando os métodos de trabalho da escrita do século X em Bizâncio, quando o imperador não realizava um trabalho sozinho, mas sempre com o auxílio de copistas e ajudantes13.

Constantino também é conhecido por outros dois trabalhos: o De Administrando Imperio e o livro De Cerimonii. O primeiro livro é um “manual”14, escrito aproximadamente entre 948-952, dedicado a seu filho Romano, para que aprendesse como deveria ser feita a administração do império que lhe legaria; o segundo, um compêndio das cerimônias do império, com o intuito de que não fossem esquecidas as práticas referentes às festividades, às tradições, às funções imperiais, a todo o conjunto de cerimoniais.

Na análise do proêmio do De Administrando Imperio, encontramos o “conselho” de Constantino VII Porfirogênito para seu filho – também porfirogênito – de que ele deveria ter uma instrução educacional que o engrandecesse, pois, destarte, seria sábio e adquiriria a prudência necessária a um basileus. Conforme as palavras do autor porfirogênito: “um filho sábio (sophós) faz feliz a seu pai, e um pai afetuoso se deleita com um filho prudente (phrónimo)”15. Ao que se segue, encontramos Constantino VII afirmando a posição dos porfirogênitos como encarregados por Deus para o exercício do poder, que deve ser feito com o auxílio de sabedoria:

Porque o Senhor lhe dá sabedoria, e Dele vêm os presentes perfeitos; Ele coloca reis no (basiléis epí thrónou) e lhes dá a soberania sobre todos. Agora, escuta-me filho meu, e seguindo os meus ensinamentos, serás sábio entre os prudentes e considerado prudente entre os sábios16.

Ainda podemos notar que Constantino crê ser uma das funções do jovem príncipe a instrução nos estudos, para que, mais uma vez, ele seja considerado sábio perante os outros povos (laoí) e nações (ethnón), conseguindo assim demonstrar toda a sua realeza aos seus súditos e aos demais.

Instrua-te no que te interessa antes que alguém o tire e apoia-te firmemente no elmo da realiza (basiléias). Estuda as coisas que há agora e instrua-te nas que serão, para que possas alcançar experiência com juízo são e possas ser competente em teus assuntos17.

Para que o filho, porfirogênito, alcance o seu poder imperial, Constantino estabelece “uma doutrina diante de ti para que possas instruir-te em experiência e sabedoria”18. Com esse propósito educacional, Constantino afirma que a História, ao longo do tempo, deve ser importante para que o príncipe saiba quais são as diferenças, semelhanças e ações que aconteceram com a passagem dos anos entre os bizantinos (romanos) e os outros povos.

O porfirogênito ainda deve saber preservar as cerimônias imperiais, as quais demonstram a beleza e magnitude da instituição imperial. Referente aos cerimoniais, encontramos no proêmio do livro De Cerimonii a preocupação com o possível desaparecimento do cerimonial palaciano bizantino, deixando uma lacuna nos símbolos imperiais. Constantino VII Porfirogênito, com o intuito de manter a honra dessas imagens imperiais, resolve reunir “de muitas partes todas as cerimônias inventadas pelos antigos, ou narradas por testemunhos, ou vistas por nós e estabelecidas em nosso tempo”, tendo em vista que:

(…) Muitas coisas são capazes de desaparecer no processo do tempo… entre elas, uma magna e preciosa, a exposição e descrição da cerimônia imperial. Descuidar esta cerimônia, e condená-la como estava à morte, é ficar com uma visão do império vazia de ornamento e privada de beleza. Se o corpo de um homem não estivesse elegantemente formado, e se seus membros fossem casualmente e sem harmonia dispostos, alguém diria que o resultado é caos e desordem. O mesmo é verdade acerca da instituição do império (basilikon politeuma); se não está guiado e governado pela ordem, não diferirá em nenhum modo do comportamento vulgar de uma pessoa natural19.

Dessa forma, é prudente e necessário para aquele que está no poder, manter todo “ornamento” e “beleza” dessa instituição, pois sem ela poderia muito bem ser instalada a desordem, tal qual o exemplo dado pelo Porfirogênito, igualando o governo a um corpo com órgãos mal distribuídos. Também é importante destacar que a função da instituição imperial é ser governada por uma ordem colocada pelo basileus, a qual aparece representada pela cerimônia, pois se não o fosse, não se distinguiria de uma pessoa normal; afinal, simbolicamente, no Império Bizantino, o imperador é tido como uma figura que se assemelha ao sol em todo o seu esplendor20.

Da mesma forma que o livro De Administrando Imperio, a obra sobre os cerimoniais também tem a função de instruir, educar, os porfirogênitos, sucessores do cetro, pois, conforme as palavras de Constantino VII, com a intenção de reunir, de organizar tais cerimoniais em um compêndio “podemos iluminar os nossos sucessores na tradição dos costumes herdados, os quais chegaram a ser descuidados e abandonados”21.

Anna Comnena (1083-1053/54) era filha primogênita de Aleixo I Comneno e Irene Ducas. Seu pai fora fundador da Dinastia dos Comnenos, que ficaria no poder por um século22 aproximadamente. Durante seu reinado pode-se notar a habilidade que este basileus teve de tentar sempre um diálogo entre seus inimigos – que o atacavam por todas as fronteiras imperiais – no intuito de manter seu império. Durante sua administração é que começa o fenômeno das Cruzadas, devido a um pedido de auxílio que havia feito ao papa Urbano II de alguns guerreiros para poderem lutar contra os seljúcidas na parte oriental dos domínios imperiais. O papa Urbano acaba por conclamar uma Cruzada em direção à Terra Santa, ainda que o movimento não tenha sido entendido dessa forma – uma luta apenas pela recuperação da Terra Santa contra os muçulmanos. Além disso, para os bizantinos, a presença dos cruzados em seus territórios significava a tentativa de usurpação territorial do próprio Império23.

Anna Comnena, única historiadora da Idade Média que temos conhecimento até hoje, nascera da sala púrpura e era destinada a ser a imperatriz do império, que acabou por ficar com seu irmão, João II Comneno. A pedido de sua mãe, a imperatriz Irene Ducas, Anna Comnena escreveu uma obra sobre a história de seu pai, que a nominou de A Alexíada, cuja significação pode ser entendida pela tentativa de apresentar seu pai como um dos grandes heróis dos antigos poemas clássicos. A própria Anna Comnena está muito presente em sua obra, ressaltando o seu nascimento porfirogênito, conforme ela mesma descreve:

O imperador retornou vencedor e triunfante à capital, em companhia dos latinos do conde Briênio, que por própria iniciativa havia passado para seu bando, como dissemos anteriormente; era um de dezembro da sétima indicação [1083]. Ali se encontrou com a imperatriz na estância destinada desde antigamente às soberanos que estão a ponto de dar à luz, a qual nossos antepassados deram o nome de pórfira, razão pela qual a denominação de porfirogênito se estendeu por todo o mundo fazendo referência aos ali nascidos. À Alba (era sábado) deu à luz a uma menina que apresentava total aparência, segundo se dizia, com seu pai. Era menina era eu24.

Dessa forma, aparece no relato o nascimento de Anna Comnena, na sala púrpura e sendo afirmada como porfirogênita, como aquela que recebe os desígnios da púrpura para dar sucessão a uma dinastia já estabelecida.

Após o nascimento de um porfirogênito, todo um cerimonial é celebrado. Anna Comnena coloca que após seu nascimento as tradições que vinham desde os tempos passados foram feitas. Estas consistiam em aclamações, distribuição de presentes por parte da aristocracia senatorial e militar. Depois de percorridos alguns dias, segundo a historiadora, seus pais consideravam-na já como uma pessoa digna da coroa e do diadema imperial. Dessa forma, parte Anna para as aclamações em cortejo popular, o qual trazia em si uma importância salutar de legitimação, sendo pois longínqua a sua afirmação, conforme a própria Anna Comnena afirma: “este cerimonial esteve se cumprindo durante bastante tempo”25, conforme escutara de seus pais posteriormente. Quando do nascimento do filho varão do imperador, João, sua irmã demonstra que esse acontecimento foi muito comemorado, uma vez que os habitantes do Império se alegravam de ver que seu imperador e imperatriz estavam alegres26. João fora, conforme mandava a tradição, levado até a igreja (Santa Sofia) e ali, sob sua cúpula iminente, batizado e coroado. Conforme a documentação salienta: “em suma, essas são as cerimônias que nos competem a nós, os porfirogênitos, desde o primeiro momento de nossa vida (…)”27.

A princesa ainda afirma como seus estudos foram voltados para os textos clássicos, a ponto de ela utilizá-los diversas vezes durante sua obra, quando a historiadora escreve, por exemplo, “conforme diz a tragédia” referindo-se aos textos de Homero ou Sófocles, ou ainda utilizando-se apenas do substantivo o “poeta”, em outros momentos. Na obra de Anna Comnena há também a sua própria tentativa de legitimação para a escrita de uma obra de História, já que não era exatamente a função de uma mulher na Idade Média escrever. Analisando o proêmio de sua Alexíada, encontramos a sua afirmação como porfirogênita e as qualidades por ela adquiridas, que a possibilitavam compor os feitos de seu pai, demonstrando até mesmo as funções do gênero histórico28.

Posto que tenho consciencia disto [do “fluxo incontido do tempo” e da necessidade de se escrever uma obra histórica para que os feitos não sejam esquecidos], eu, Ana, filha de Aleixo e Irene, haste e produto da púrpura, não só não sou inculta em letras, como inclusive estudei a cultura grega intensamente, que não desatendo a retórica, assimilei as disciplinas aristotélicas e os diálogos de Platão e madurei o quadrivium das ciências (devo revelar que possuo estes conhecimentos – e não é jactância o feito - todos os quais me foram concedidos pela natureza e pelo estudo das ciências, que Deus desde o alto me presenteou e as circunstâncias me aportaram) quero, por meio deste escrito, contar os feitos de meu pai, indignos de serem entregues ao silêncio ou de serem arrastados pela corrente do tempo (…), serão estes todos os feitos que levou a cabo depois de tomar a posse do cetro e os que realizou a serviço de outros imperadores antes de conseguir o diadema29.

A formação de Anna Comnena foi sempre voltada para a leitura dos clássicos gregos e romanos (não nos esqueçamos que Bizâncio era a continuadora dessas duas culturas), ainda que seus pais não aprovassem, querendo que ela apenas se aprofundasse nos estudos dos textos sagrados. Mas sua avó, Ana Dalassena, fez com que ela tivesse amplos estudos e que tivesse acesso a diversas leituras, até mesmo a profana, ou seja, os clássicos. Por isso Anna Comnena foi um caso extraoridnário dentro da sociedade bizantina, não estando destinada apenas ao estudo dos já mencionados textos sagrados – os Evangelhos – e das práticas de organização da casa e cuidados com os filhos30. Assim, vemos uma autora que se afirma enquanto historiadora e que, ao mesmo tempo, nos demonstra toda a sua educação erudita, e por isso incomum, para a época em que viveu. Essa característica de Anna Comnena demonstra que ela não seguiu apenas aquilo que as mulheres em Bizâncio estudavam, mas foi além.

Considerações parciais

Podemos tecer alguns comentários, pequenas considerações iniciais acerca da temática da porfirogenia bizantina. Alguns apontamentos que tentam auferir considerações que julgamos importantes. Obviamente, este trabalho pretendia, desde o início, muito mais apontar do que concluir, sugerir do que resultar. Dessa forma, espera-se que as discussões sobre o tema possam iniciar-se a partir destas pequenas considerações.

4.1 – O florescimento cultural de Bizâncio à época dos Macedônios pode ser caracterizado como um processo histórico que resultam em “permanências posteriores” de grande influência para o império. Do mesmo modo que vemos que muitas formas de produções históricas tiveram seu início na dinastia anterior aos Macedônios, essas formas continuaram até a época dos Comnenos, quando a capital do Império, Constantinopla, fora considerada como a capital cultural do Império Bizantino31. Ainda que o Império tenha sofrido gravíssimas perdas com a Batalha de Mantzkiert em 107132– o que fez com que a historiografia considerasse esse evento como o início do fim do Império Bizantino –, sofresse com diversas disputas entre as aristocracias militares para tomada de poder, dificuldades econômicas, entre tantas outras coisas, no panorama cultural, há um prolongamento de longo prazo. Ainda podemos encontrar, pois, a forte influência dos clássicos dentro da educação bizantina, ainda que esta fosse para poucos. O que inclui os porfirogênitos na escala do ambiente palaciano de Constantinopla.

4.2 – Nas palavras de Atanásio Marcópolus, “no século X, o poder imperial era objeto de uma competição entre famílias da aristocracia; a historiografia estava obrigada a refletir este fenômeno”33. Este historiador ainda comenta que “Constantino VII se utilizou da tradição cronográfica anterior porque seu objetivo é político, a dizer, o elogio da dinastia macedônica e seu fundador Basílio I”34. Assim, temos a afirmação da dinastia Macedônica através dos textos de um porfirogênito, sucessor por excelência do cetro imperial. Isso fica bem eminente quando nos deparamos com obras como o De Administrando Imperio e o De Ceremonii, sendo que ambos escritos servem para demonstrar a importância daquele imperador e de como ele deve fazer para exercer seu poder como um dom recebido diretamente de Deus.

Da mesma forma, encontramos em Anna Comnena uma afirmação da instituição imperial a partir de uma obra de história. O herói dos antigos poemas homéricos não é mais um Ulisses, mas sim um Aleixo, daí a derivação do nome da obra: Alexíada. E, tal como Constantino VII Porfirogênito, há o eu dos autores muito presente em seus textos. Anna Comnena, ao estar sempre presente em sua obra – entenda-se que de modo subjetivo e também não subjetivo, haja vista a sua participação enquanto personagem ativo, que aparece diversas vezes no relato – acaba por se contrapor à ideia exposta por Bernard Guenée no verbete “História”35, quando este diz que uma das características dos historiadores medievais é não figurarem em suas obras – questão que está longe de ser encontrada no escrito da princesa. Mas, em toda forma, podemos notar uma apologia de afirmação às suas famílias através de seus textos, colocando que os sucessores dos basileus são aqueles nascidos na sala púrpura, conforme demonstra a tradição e o cerimonial.

4.3 – Ambos os autores demonstram a importância dos estudos para a formação de um porfirogênito. Tanto em Constantino VII Porfirogênito quanto em Anna Comnena encontramos também uma apologia aos estudos, pois dessa forma podem alcançar a sabedoria. Não à toa Constantino VII aconselha seu filho a se instruir nas coisas que são conhecidas, ressaltando que assim conseguirá o domínio da prudência na administração do Império Bizantino. Anna Comnena afirma ao longo de toda a sua obra a influência que teve de seus estudos voltados aos textos clássicos, além do aprendizado do trivium e quadrivium. Ainda que em seu caso tenha ocorrido o desejo sempre explícito de seus pais de que deveria instruir-se, conforme a maioria das mulheres bizantinas, nos textos sagrados e não na literatura considerada profana (os clássicos). Essa educação, claro é, possibilitou com que ambos pudessem se interessar pelo fazer histórico36 e que pudessem executá-lo, de forma a compor uma obra de próprio punho (caso de Anna Comnena) ou organizar a feitura (Constantino VII Porfirogênito). Portanto, sua educação também serviu como elemento afirmador de uma sucessão imperial dinástica, mesmo em um momento em que o império se encontrava envolto em disputas aristocráticas pelo cetro imperial.

Referencias

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  1. Essas leis serviram de base para o sistema legal bizantino até 1453.
  2. RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, pp. 37.
  3. Pode-se surgir a questão do porquê não ser Leão VI porfirogênito, já que ele era filho de Basílio I e sucessor do cetro imperial – questão pertinente – que nos é acalmada por Runciman em sua A civilização bizantina, quando numa nota de rodapé, nos escreve que a paternidade de Leão VI era duvidosa, pois sua mãe fora amante de Miguel III, imperador que antecedeu Basílio no comando do Império, e que fora assassinado por este. Ver, entre outros: RUNCIMAN, idem, pp. 37, e GIORDANI, Mário Curtis. História do Império Bizantino. Petrópolis, RJ: Vozes, 1968, pp. 67.
  4. Irmão de seu pai.
  5. Neste ponto faço menção às aulas que assisti de História Medieval com a Professora Marcella Lopes Guimarães, que dizia sempre em suas classes e em seus cursos, que o rei medieval tinha que funcionar (no sentido de suas ações serem funcionais dentro da sociedade) – faço este paralelo com o imperador bizantino, que era, conforme o texto de MCCORMICK, M. O Imperador. CAVALLO, Guglielmo (org.). O Homem Bizantino. Lisboa: Presença, 1998, pp. 219-239, caracterizado simbolicamente como o sol.
  6. VRYONIS, Speros. Bizâncio e Europa. Lisboa: Editorial Verbo, 1980, pp. 88. Ainda podemos verificar que não foi uma iniciativa única e exclusiva da dinastia macedônica, mas sim parte de um processo histórico que, com práticas já iniciadas na época de Miguel III, ganharam força nova na dinastia que se iniciava.
  7. GIORDANIS, op. cit. pp. 71.
  8. RIVEROS, José Marín. “Croatas y Serbios en el de Administrando Imperio de Constantino VII Porphyrogenito”. Trabalho apresentado no II Coloquio de Estudios Medievales da Universidade de Bio-Bio, 1994. Tradução ao português nossa.
  9. Juan Signes Condoñer afirma que: “Se sabe que el emperador, insatisfecho con la version de los hechos que realizó Genesio en su obra, decidió proceder a la ‘reescritura’ de la misma, que es lo que vino a desembocar en la crónica que hoy conocemos como Theophanes Continuatus, por más que la crónica de Genesio sea, también Ella, uma ‘continuación’ de la de Theophanes”. In. SIGNES CONDOÑER, Juan. “Algunas consideraciones sobre la autoria del Theophanes Continuatus”. Erytheia, n. 10-1, 1989, pp. 18.
  10. O último seria uma edição posterior, provavelmente sob o período de administração de Nicéforo II Focas (963-969).
  11. O livro I era sobre Leão V (813-820), seguido do II sobre Miguel II (820-829), III sobre Teófilo (829-842), IV sobre Miguel III (842-867), o livro V sobre seu avô Basílio I, fundador da Dinastia da qual fazia parte (867-886). Sobre o tema, ver: SIGNES CONDOÑER, Juan. op. cit. O sexto livro, posteriormente escrito, conforme salientado em linhas acima, abarca num fôlego único os períodos que compreendem as administrações de Leão VI, Alexandre, Romano I Lecapeno, Constantino VII Porfirogênito e Romano II. Para maiores informações: MARCÓPOLUS, Atanasio. “La historiografia bizantina y Constantino VII Porfirogênito”. Erytheia, n. 7-2, 1986.
  12. SIGNES CONDOÑER, op. cit. pp. 19-20.
  13. Idem, pp. 27.
  14. RIVEROS, op. cit. pp. 62.
  15. Const. Porf. De Adm. Imp. Proêmio.” In: RIVEROS, José Marín. HERRERA C, Héctor. El Imperio Bizantino. Introducción Histórica y Selección de documentos. Santiago de Chile: Centro de Estudios Griegos, bizantinos y Neohelénicos “Fotios Malleros”, 1998, pp. 54-55. Tradução ao português nossa.
  16. Const. Porf. De Adm. Imp. Proêmio.
  17. Const. Porf. De Adm. Imp. Proêmio.
  18. Const. Porf. De Adm. Imp. Proêmio.
  19. Const. Porf. De Cer. Proêmio.
  20. Mais uma vez faço analogia ao texto de McCormick, da Coleção O Homem Bizantino, op. cit.
  21. Const. Porf. De Cer. Proêmio.
  22. Faço referência ao livro de WALTER, Gérard. A vida quotidiana em Bizâncio no século dos Comnenos (1081-1180). Lisboa: Edição “livros do Brasil”, s/d. que traz no título o nome de século dos Comnenos. Ainda que se deva fazer a ressalta do período anterior em que Isaac Comneno ficou no poder imperial entre o pequeno período de 1057-1059.
  23. Os relatos que se tem – Anna Comnena e, posteriormente, Niceta Coniata – descrevem os cruzados ocidentais como usurpadores do cetro imperial de Aleixo I. Para um estudo inicial sobre o caso dessa construção de imagem bizantina sobre os cruzados, nosso trabalho apresentado no III Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais / X Ciclo de Estudos Antigos e Medievais, intitulado BASSI, R. J. “Eles vêm depois dos gafanhotos: uma visão bizantina dos primeiros cruzados”, inédito.
  24. Anna Comn. Alex. Liv. VI, cap. VIII. (pág. da trad., 280).
  25. Anna Comn. Alex. Liv. VI, cap. VIII. (pág. da trad., 281).
  26. Anna Comn. Alex. Liv. VI, cap. VIII. “Todos los súditos saltaban viendo a sus gobernantes tan felices, se alegraban unos con otros y disfrutaban del regocijo” (pág. 282). Ainda que Anna comente que alguns deles estavam fingindo, todos se mostravam alegres em uníssono.
  27. Idem, ibidem.
  28. Para considerações sobre a análise do proêmio da Alexíada, ver: BASSI, Rafael José. “De vossas fontes bebi: A presença do pensamento de Heródoto, Tucídides e Políbio na concepção de História d’A Alexíada de Anna Comnena (Séculos XI e XII)”. In: Atas da VII Semana de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: PEM – UFRJ, 2008. pp. 155-162.
  29. Anna Comn. Alex. Liv. Proêmio.
  30. TALBOT, Op. cit.
  31. RIVEROS, Op. cit. pp. 107.
  32. Bizâncio perde cerca de dois terços dos seus territórios para os muçulmanos, incluindo Nicéia, então considerada como a segunda cidade de maior importância dentro do Império.
  33. MARCÓPOLUS, Atánasio. Op. cit., pp. 204.
  34. Idem, ibidem.
  35. GUENÉE, Bernard. “História”. In. LE GOFF, Jacques; SCHIMITT, Jean-Claude (org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006. vol. 1.
  36. Ainda que no caso de Anna Comnena ela tenha recebido o pedido de sua mão após a morte de seu marido, Nicéforo Briênio, que havia sido o primeiro encarregado da feitura de uma obra de história com os feitos de Aleixo I Comneno.